Tomé acredita e tece a vida em crochê

“Me vejo como artesão, assim como a Jesus, minha Mestra. Pra mim qualquer trabalho é normal, desde que não seja exploração. Não me envergonho do que sei fazer”.

Tomé acredita e tece a vida em crochê Incentivado pela esposa, Maria de Jesus, Tomé é um apaixonado pelo crochê.. Foto: Floriano Lins Notícia do dia 30/05/2025

No contexto atual, luta por sobrevivência e/ou vida com dignidade exige desafios, ousadia, atrevimentos... O que não é tão fácil! Principalmente para quem troca o almoço pela janta. A trajetória de José Tomé Castro Fonseca, traz um pouquinho dessa realidade. Sêo Tomé, 64 anos, natural da comunidade Aduacá (Nhamundá/Am) compartilha história de vida e habilidades profissionais divergentes do padrão patriarcal. Casado com Dona Maria de Jesus de Souza Fonseca, artesã, nativa da comunidade Panauaru (Parintins/Am).

 

Como todo nativo amazônida, Sêo Tomé traz relatos e modos de vida que, sem dúvidas, contribuíram na construção do Ser Humano que É...

 

“As memórias de minha infância são muito boas, apesar das durezas... Meu pai era rígido, mas era um jeito responsável de nos educar pra vida com amor. A gente obedecia e seguia suas orientações. A nossa criação foi muito boa! Ele nos ensinou respeitar a natureza, as crianças, os adultos, pessoas mais velhas, deficientes... Sou o que ele semeou. Dou graças a Deus por tudo isso”.

 

Nesse diálogo traz um pouco de sua trajetória e experiências singulares junto a Dona Maria de Jesus...

 

“Somos casados há mais de 50 anos. Temos seis filhos: três mulheres e três homens. Já ralei muito. Só uma vez trabalhei empregado. Quando saí, o patrão me deu um triciclo e fui triciclista até 2007. Parei porque adoeci muito. Até hoje os médicos não descobriram a tal doença. Daí a Jesus virou minha mãe, meu pai, meu tudo... Ela trabalhava fora e eu ficava em casa. Sentia muita falta da vida no interior, do nosso trabalho na roça. Lá a gente comia o que plantava e pescava; muito difícil adoecer e quando adoecia, os alimentos e as plantas nos curavam. Mais pra frente, já casados, fomos morar no Panauaru. Vivemos lá uns dezoito anos.

 

A reinvenção da vida do casal em Parintins...

 

 

“Nosso filho mais velho veio estudar em Parintins e morava com a minha mãe. Quando pegava umas feriaszinhas se mandava pro nosso lado. Pedia pra virmos pra Parintins e ameaçava sair da escola. Dizia não ser justo nós trabalhar tanto por ele; queria um trabalhinho perto de nós. Pensamos muito... Até que o primo da Jesus nos vendeu este terreno onde fizemos nossa casinha e estamos aqui até hoje, na rua Amazonino Mendes, 3577, Bairro Itaúna II. Nosso menino se formou, mora em Manaus e está bem. E nós temos por aqui reinventando a vida. Além de triciclista, fui merendeiro. Eu e a Jesus fazíamos salgados. Aí apareceu a covid... Já não sabia o que fazer: idade avançada e a covid matando. Tive medo e parei a venda dos salgados. Fiquei muito pra baixo... Como vou sobreviver agora? Me perguntava... Me abri com a Mulher e ela falou: ‘- se quiser aprender fazer rede, eu te ensino. Eu faço os meus trabalhos e tu faz os teus’. Se tu tiver paciência, pode ser que eu aprenda, respondi. E aprendi! O lucro hoje é bem maior. Os salgados só davam pra comprar o material... Tudo era caro e muito trabalho. Lucro zero. Aí me apaixonei pelo crochê. Não pretendo deixar. O resultado é bom. Tecer rede é também uma terapia. A gente faz legal, com paciência... Até hoje, graças a Deus, nunca botaram defeito no meu trabalho”.

 

Os desafios na aprendizagem do crochê...

 

“A Jesus sempre fez crochê, bordados, brincos muito bem. Vejo ela uma grande artesã. Contemplava ela fazendo as artes e eu ali parado; me dava uma grande dor. Ela percebeu e se ofereceu pra me ensinar a fazer a rede. Custei um pouco aprender. Não sabia pegar direito na agulha... Pelejei, pelejei e não acertava mesmo! Aí, ela já tava cansada e deixou eu me virar sozinho. E pelejava, pelejava... a agulha não dava certo... Já discunforme cansado, apelei: meu Deus, me ajude! Eu preciso desse trabalho!... Nisso, minha memória abriu e o negócio engrenhou. Agradeço todo dia a Deus e a ela. Aí não parei mais. É rede todo dia...

 

O trabalho cooperativo do casal ganha dimensão...

 

“Eu trabalho com produção de rede e a Jesus com brinco, apliquê, crochê... Ela costura o tecido, faz a varanda das redes e o que compete a ela; o resto é por minha conta: o caseado pra receber o punho. Essa cooperação tem ajudando muito na nossa sobrevivência. Nós dois somos aposentados, só recebemos de mês em mês... É das redes que a gente tira o necessário. Vendemos bem: encomenda não falta. Já vendemos rede pro Japão, pra Milão, na Itália, pros Estados Unidos... No Brasil, pra Paraíba, Ceará, Porto Alegre, Manaus, Rondônia... Nosso trabalho tá por aí. Muitas pessoas publicam nosso trabalho. Os fregueses falam pros amigos de outras cidades e aí a gente vai vendendo”.

 

Sêo Tomé já não aceita ser empregado de alguém...

 

“Não quero mais trabalhar como empregado de ninguém. Posso até dividir o trabalho dentro das minhas condições. Mas, as redes não deixo não! Ajuda muito. Vendo uma rede por R$ 350,00. Já vendi uma até por R$ 600,00. A encomenda era de uma rede bem grande com forro. Temos agora uma encomenda de cinco redes pra Boa Vista do Ramos (Parintins/Am)”.

 

Sobre homens em Parintins que tecem crochê...

 

 

“Iniciei esse trabalho em 2020. Desconheço outros homens que façam crochê aqui em Parintins. Às vezes me chamam de alfaiate, mas meu trabalho é com crochê. Me vejo como artesão, assim como a Jesus, minha Mestra. Pra mim qualquer trabalho é normal, desde que não seja exploração. Não me envergonho do que eu sei fazer. Teço na frente de qualquer pessoa. É o meu trabalho. Pessoas passam aí na rua, me olham... Se quiserem tirar foto de mim tecendo, não impeço. Eu me sinto muito bem como artesão”.

 

Compartilha reflexões sobre preconceitos e ausência de oportunidades artísticas para adolescentes...

 

“Vejo que muitos adolescentes estão perdidos por falta de uma boa educação. Além de tudo, pros meninos é muito difícil aceitarem aulas de crochê e até outras artes. As meninas aceitam com mais facilidade. Os meninos levam para o lado preconceituoso, porque está carimbado na cabeça que certas artes como o crochê, bordado só pra mulher. Em vez disso, era pra ter uma educação que livrasse a curuminzada dos preconceitos, das violências e até das drogas. Uma vez, uma professora veio aqui em casa e me perguntou se eu não tinha vergonha de tecer crochê... Disse não. É o meu trabalho. Dá uma boa grana”.

 

Em remate, nosso Artesão do Crochê deixa um recado para os homens e para a classe trabalhadora. É um alerta sobre dependências de empregos, patrões, e de toda forma de exploração....

 

“Se a gente não se acomodar esperando emprego, vai se descobrindo e consegue vencer. Não sou formado, estudei até a quarta série, no interior, mas, graças a Deus, por onde trabalhei foi com honestidade. Nunca me denunciaram por roubos, assaltos ou drogas. Essa criação meu pai me deu. Sempre respeito as pessoas; não dou motivo pra me chamarem atenção. E vou vivendo a minha vida. Descobrindo caminhos de sobreviver dignamente. E essa Mulher do meu lado, a minha Jesus, é uma grande força! Com Ela os caminhos se abrem e juntos vamos tecendo nossa liberdade de ser o que somos”.

 

E, assim, o tempo passa... Em nossas memórias ficam ensinamentos singulares que merecem compartilhamentos entre as novas gerações, homens e mulheres de boa vontade. Nossa crença e propósito é a reinvenção de mundos dignos e possíveis.

 

Maria de Fátima Guedes Araújo. Caboca das terras baixas da Amazônia. Educadora popular, pesquisadora de saberes popular/tradicionais da Amazônia. Licenciada em Letras pela UERJ (Projeto Rondon/1998). Com Especialização em Estudos Latino-americanos pela Escola Nacional Florestan Fernandes/ UFJF. Fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular em Saúde (ANEPS). Autora das obras, Ensaios de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.