Criança de Barcelos infectada com raiva humana sobrevive

Apesar da erradicação do vírus, o menino deve seguir internado, por tempo indeterminado, para tratamento das complicações causadas pela raiva humana.

Criança de Barcelos infectada com raiva humana sobrevive Equipe médica durante anúncio da vitória dos remédios contra a doença Notícia do dia 10/01/2018

O paciente do município amazonense de Barcelos, de 14 anos, que contraiu raiva humana, passou a ser considerado o segundo sobrevivente da doença no Brasil. A erradicação do vírus foi confirmada, nesta terça-feira (09/01), em entrevista coletiva organizada pela Secretaria de Estado de Saúde (Susam). O adolescente, que foi internado no dia 2 de dezembro de 2017, na Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD), unidade da rede estadual de saúde, foi submetido ao Protocolo de Milwaukee, um tratamento responsável por outros casos de cura da doença registrados no mundo. O procedimento é um tratamento experimental para raiva em seres humanos e teve uso autorizado pelo Ministério da Saúde.

 

Para o secretário estadual de Saúde, Francisco Deodato, esta é mais uma etapa vencida no processo, tendo em vista que o caminho para a recuperação total do paciente é bastante longo. Deodato ressaltou a importância do trabalho integrado das instituições envolvidas.

 

“Em nome do Governo do Amazonas, agradecemos a participação efetiva e integrada de instituições das diferentes esferas de governo, como as secretarias municipais de Saúde de Barcelos e Novo Airão, do Ministério da Saúde, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio), do Pronto-Socorro da Criança Zona Leste, da FMT-HVD, dos laboratórios de referências, como Instituto Butantã e Evandro Chagas, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM), que coordenou todo o processo de investigação, prevenção e controle da situação local, em curto espaço de tempo, em área de difícil acesso e condições precárias de trabalho, no intuito de preservar vidas, proporcionando o retorno à normalidade na região onde três casos de raiva humana foram registrados”.

 

Empenho das autoridades de saúde - O diretor-presidente da FMT-HVD, Marcus Guerra, também ressaltou o empenho das autoridades de saúde do Estado e do Ministério da Saúde, que não mediram esforços para apoiar o tratamento do menino, bem como a dedicação da equipe médica. “Esse apoio tem ajudado no astral da equipe”, disse.

 

O diretor de Assistência Médica da FMT-HVD, infectologista Antônio Magela, membro da equipe médica que acompanhou o tratamento do paciente, considera que um dos principais fatores que contribuiu para a cura foi o diagnóstico precoce da doença e a internação imediata. Magela participou da coletiva, ao lado da médica de Terapia Intensiva Pediátrica do Hospital e Pronto-Socorro da Criança Zona Leste, Dayse Souza, do diretor-presidente da FMT-HVD, Marcus Guerra e do diretor-presidente da FVS, Bernardino Albuquerque.

 

Protocolo de Milwaukee - Magela relatou que o adolescente chegou ao Hospital da FMT-HVD consciente, sem nenhum sintoma neurológico, mas foi tratado desde o primeiro momento com o Protocolo de Milwaukee, por conta do histórico de agressões de morcego.


O tratamento consiste na sedação do paciente (coma induzido) e uso de medicações – um antiviral e outro medicamento precursor de neurotransmissores, controle da motricidade dos vasos sanguíneos do sistema nervoso central e prevenção de convulsões. No processo, o paciente é mantido em coma induzido, ventilação mecânica e cuidados intensivos de suporte à vida. As medicações foram enviadas pelo Ministério da Saúde à FMT-HVD.

 

“Ele foi o terceiro membro da mesma família a ser internado. O irmão mais velho, infelizmente, já chegou a Manaus em estado grave e veio a óbito antes de receber o diagnóstico de raiva humana. A irmã de dez anos foi internada na FMT-HVD e chegou a iniciar o Protocolo de Milwaukee, mesmo sem a confirmação de raiva, mas já apresentava quadro muito grave e, lamentavelmente, também não resistiu ao tratamento. Este adolescente foi internado horas após a irmã falecer, apresentando formigamento nas mãos. Nesse mesmo dia, durante a noite, ele teve uma convulsão e precisou ser sedado e encaminhado à UTI”, explicou Magela.

 

Melhora clínica progressiva - Logo nos primeiros dias de contágio, o adolescente apresentou agravamento do quadro, característica da infecção viral, ficando em estado gravíssimo, mas após o período considerado crítico do vírus passou a responder bem ao tratamento. Antônio Magela explica que a melhora clínica tem sido progressiva.

 

“Ele foi transferido para o Hospital e Pronto-Socorro da Criança (HPSC) da Zona Leste e está se alimentando por sonda e via oral. Já sai do leito para a poltrona, onde tem feito fisioterapia. Devido à melhora, teve alta da UTI e agora está em enfermaria, tendo acompanhamento de pediatras, fisioterapeutas, nutricionista, neurologista e outros profissionais. Na enfermaria, o paciente tem mais contato com os familiares. O acolhimento familiar tem melhorado bastante o quadro do menino, que fica muito feliz ao ver o pai”, disse.

 

Acompanhamento - Apesar da erradicação do vírus, o menino deve seguir internado, por tempo indeterminado, para tratamento das complicações causadas pela raiva humana. “O paciente de Recife – primeiro caso de cura da raiva no Brasil – ficou internado por nove meses e tem acompanhamento ambulatorial até hoje. Queremos garantir que este adolescente tenha a melhor recuperação possível. Por isso, continuará sendo acompanhado por uma equipe inter e multidisciplinar”, ressaltou.

 

Durante todo o tratamento, as equipes de saúde têm mantido contato com o criador do Protocolo de Milwaukee, o médico norte-americano Rodney Willoughby, referência mundial no tratamento de raiva humana. Ele acompanhou todos os casos com cura da doença no mundo, inclusive o primeiro no Brasil, que ocorreu em 2009.

 

O sonho é poder conversar com ele, diz pai - Também participou da coletiva o pai do paciente, o agricultor Levi Castro, 47, que se emocionou ao falar sobre a recuperação do filho. “Ele tá muito debilitado e ainda precisa recuperar as funções. A gente sabe dos riscos, mas sabe também que o pior já passou e a sensação de que logo ele vai estar indo pra casa nos traz ânimo. O sonho é poder conversar com ele e vê-lo andando e sorrindo”, disse o pai que perdeu outros dois filhos para a doença.

 

Segundo a médica Dayse Souza, que hoje acompanha o jovem no PSC Zona Leste, o processo de recuperação ainda será longo. “Atualmente, ele ainda está em processo de convalescência fazendo a recuperação das sinapses. Com essa recuperação, é que a gente espera que venha a consciência. De todo modo, é uma vitória e acho importante para o futuro do paciente, de todos, da medicina e da ciência”, disse. Segundo ela, o paciente vai precisar de acompanhamento de toda uma equipe multidisciplinar depois que recuperar a consciência e de tratamento fisioterápico. Ainda é cedo para prever como será essa recuperação.

 

Imunização em Barcelos - Em Barcelos, a 405 km de Manaus, a Susam, através da Fundação de Vigilância em Saúde (FVS), reforçou a distribuição de sorovacinação, mais precisamente nas comunidades localizadas na região do rio Unini, onde ocorreram os casos. A FVS solicitou ao Ministério da Saúde o envio de vacina e soro, até mesmo para as pessoas que não sofreram agressão de morcegos. O procedimento padrão de profilaxia prevê vacinação apenas de pessoas agredidas.

 

“Frente à situação vivenciada naquelas comunidades, com três casos confirmados de raiva humana, a FVS entrou em contato com a representação do Ministério da Saúde e discutiu a possibilidade de, excepcionalmente, ter uma mudança no que diz respeito à profilaxia. Aquela é uma região de difícil acesso, para que o serviço de saúde consiga fazer, com a agilidade necessária, a manutenção de insumos, como a aquisição da vacina e soro”, explicou o diretor-presidente da FVS-AM, Bernardino Albuquerque.

 

No total, foram enviadas para a Secretaria Municipal de Saúde de Barcelos (Semsa-Barcelos) 3.100 doses da vacina antirrábica humana, em 2017. Até novembro, a FVS-AM distribuiu 634.311 doses de vacina antirrábica animal, 24.173 doses de vacina antirrábica humana e 1.042 doses de soro antirrábico, através de demanda das secretarias municipais de saúde. Ao longo do ano, apenas Manaus, Tabatinga e Boca do Acre solicitaram mais soro e vacina antirrábica à FVS.

 

As ações de vacinação, humana ou animal, são municipalizadas, ou seja, executadas pelas Secretarias Municipais de Saúde, que devem realizar anualmente, no máximo até o mês de novembro, as campanhas de imunização de cães e gatos, em todas as comunidades de seu território. É delas também a incumbência de realizar o esquema de sorovacinação de profilaxia da raiva humana nas pessoas agredidas por animais. A FVS-AM é responsável pelo abastecimento e manutenção dos estoques dos soros e vacinas, de acordo com os pedidos dos municípios.

 

Controle de morcegos - As ações de monitoramento realizadas pela FVS-AM prosseguem em todos os 37 municípios que apresentaram ataques por morcegos no Amazonas, incluindo Barcelos, onde houve a ocorrência dos casos de raiva. Nesses municípios, o órgão também continua a realizar o serviço de captura dos morcegos, para análise de circulação viral. É importante ressaltar que somente animais doentes transmitem o vírus rábico. Caso a pessoa seja mordida por um morcego que não esteja doente, não há risco de contrair raiva humana.

 

Uma equipe da FVS-AM, formada por médico veterinário, biólogo, técnicos de zoonose com vasta experiência na prevenção e controle de morcegos, esteve nas comunidades do rio Unini, para realizar o trabalho de controle a surtos. Foi testado o uso de mosquiteiros impregnados com inseticidas, usados no combate aos casos de malária. No entanto, foi registrado que os morcegos conseguem morder as pessoas, mesmo com o uso dos mosquiteiros. Telar as janelas das casas, de acordo com a equipe técnica, também foi ineficiente, já que os morcegos entram nas casas por espaços no teto.

 

A medida mais eficaz, segundo a FVS-AM, foi o uso de pasta vampiricida. Os morcegos tratados com a pasta retornam para a colônia e controlam a população dos animais doentes. Dentre as atividades desenvolvidas pela equipe da FVS, foram capturados 31 morcegos hematófagos da espécie Desmodus rotundus, coletados em todas as comunidades que tiveram ocorrência de agressões por estes animais, no rio Unini. “Sete exemplares de morcegos hematófagos foram encaminhados para pesquisa do vírus rábico e 24 foram tratados com pasta vampiricida e soltos para o controle das colônias, método indicado para a diminuição de ataques por estes animais”, explica Fernandes.

FOTOS: AGUILAR ABECASSIS/SECOM