ESPECIAL: Humanização da Justiça

Um dos objetivos desse procedimento especial é fazer com que a criança não seja obrigada a repeti-lo várias vezes e, portanto, ser revitimizada. Em um processo comum, a criança presta depoimento no conselho tutelar, no juizado de menor, na delegacia e dep

ESPECIAL: Humanização da Justiça Notícia do dia 23/08/2015

A Safernet Brasil, entidade que atua no enfrentamento aos crimes e violações aos direitos humanos na internet, divulgou no ano passado um levantamento que indicou a pornografia infantil como o crime virtual mais denunciado no Brasil em 2013. Nesse período, 24.993 páginas foram denunciadas por apresentarem material envolvendo pornografia infantil, o que representa um aumento de 3,83% em comparação com 2012. O ranking em hospedagem de conteúdo criminoso foi liderado pelos Estados Unidos, com 32.570 denúncias. Em seguida vem a Irlanda, com 11.121; em terceiro lugar, a Holanda, com 3.241, e o Brasil, ocupando a quarta colocação, com 1.998 denúncias.

Esse preocupante aumento dos crimes cibernéticos alerta para a necessidade de buscar novas formas de enfrentar as demandas que chegam ao Judiciário por conta de crimes dessa natureza. Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou a pesquisa “Cartografia nacional das experiências alternativas de tomada de depoimento especial de crianças e adolescentes em processos judiciais no Brasil: o estado da arte”, realizada em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e com a Editora da Universidade Católica de Brasília (EdUCB). O estudo teve por objetivo mapear os projetos de depoimento especial nos Tribunais de Justiça, analisar o status da informação sobre a temática nos sites desses Tribunais e referenciar a produção de conhecimentos de perfil acadêmico-científico com potencial para subsidiar o processo de consolidação do depoimento especial como um direito da criança e uma política pública de Estado.

A pesquisa compõe a terceira etapa do projeto “Culturas e práticas não revitimizantes: reflexão e socialização de experiências alternativas para a tomada de depoimento de crianças e adolescentes em processos judiciais”, que originou o estudo “Depoimento sem medo (?): culturas e práticas não revitimizantes: uma cartografia das experiências de tomada de depoimento especial de crianças e adolescentes”, configurando-se como o primeiro mapeamento mundial de experiências não revitimizantes em testemunho infantil distribuídas em 28 países, publicada em português e inglês.

De acordo com o documento, a necessidade do depoimento especial se tornou latente como forma de sanar a dificuldade de produção de provas e, consequentemente, os altos níveis de impunidade de acusados de situações de violência intrafamiliar. De acordo com os pesquisadores Cortez, Padovani e Williams (2005), – em estudo divulgado pelo Laboratório de Análise e Prevenção da Violência da Universidade Federal de São Carlos –, de 178 denúncias nas Delegacias de Defesa da Mulher (DDM) de São Paulo, somente 2% chegaram a condenações, nada menos que 70% dos casos foram arquivados por desistência da vítima, que mudou seu depoimento, e em 21% dos casos julgados os acusados foram absolvidos. Nesse cenário, a proporção entre absolvidos e condenados é de mais de dez para um, o que pode contribuir para a perpetuação da violência.

No Brasil, desde a implantação da experiência pioneira da 2ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre (RS), em 2003 – anteriormente denominada depoimento sem dano, hoje chamada depoimento especial – vem sendo registrado no País aumento substancial do interesse por essa prática enquanto procedimento inovador para a proteção especial de crianças e adolescentes na condição de vítimas e/ou testemunhas em processos judiciais.*

Na Justiça Federal, o interesse pela prática também é uma realidade, diante do novo perfil que os crimes de violência contra crianças adquiriram com a expansão da internet. Esses crimes e disputas de guarda são de competência da Justiça Estadual, mas, com a utilização da rede para produção e distribuição de materiais que registram abuso sexual de menores para outros países, a Justiça Federal passou a ter contato com as vítimas. “A internet é uma ferramenta fantástica que revolucionou nossa forma de comunicação, mas que também veio a ser usada de forma negativa, como instrumento para crimes que já estavam quase adormecidos, como a pornografia infantil que já estava em desuso, e a internet facilitou a forma de produção e distribuição, fazendo esses crimes ressurgirem com força total. Hoje, cresce assustadoramente o número de abuso sexual de crianças pela internet”, explicou Simone Lemos Fernandes, juíza federal da 35ª Vara Federal Criminal de Minas Gerais e responsável pela primeira sala de oitiva especial da Justiça Federal, instalada na Seção Judiciária de Minas Gerais (SJMG).

O diretor do Foro da Seccional mineira, juiz federal Miguel Angelo de Alvarenga Lopes, atribui o aumento do número de casos envolvendo a violência contra crianças e adolescentes por meio virtual à facilidade da prática desses crimes pela internet, aliada à democratização do uso da rede. “O crescimento dos crimes cibernéticos contra crianças e adolescentes em nossa sociedade é um dado preocupante. Os órgãos envolvidos na punição destes crimes precisam estar preparados para lidar com essa nova realidade”.

Para enfrentar a situação, desde abril deste ano a SJMG conta com uma sala de oitiva especial para crianças e adolescentes destinada à tomada de depoimentos de vítimas de ações penais em curso, com adoção de metodologias não revitimizantes em sua escuta. A iniciativa da Direção do Foro teve origem em um requerimento dos juízes federais criminais da seccional mineira, que solicitaram o atendimento à Recomendação nº 33/2010, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), segundo a qual a oitiva dos menores de 18 anos deverá ser feita em ambiente especialmente preparado para esse objetivo.

Miguel Angelo explica que, diante do volume de processos relativos a esses crimes, que são de competência da Justiça Federal, constatou-se, rapidamente, que as salas de audiências comuns não são adequadas para que o juiz obtenha de uma criança o depoimento relativo aos fatos ocorridos com ela mesma ou com outra criança. “O ambiente físico de uma sala de audiência criminal é por demais estranho e intimidador para uma criança ou mesmo para um adolescente. Daí a necessidade de disponibilizar, aos juízes federais das Varas Criminais, uma sala de audiência especialmente preparada e ambientada para a oitiva das vítimas ou testemunhas dos crimes cibernéticos”.

O magistrado acredita que tão importante quanto adequar os espaços para melhorar o desempenho da jurisdição, é a humanização do ambiente da Justiça Federal, possibilitando o tratamento adequado às vítimas e às testemunhas. “Com a sala de oitiva infantil atingimos estes dois objetivos de forma satisfatória”, concluiu Miguel Angelo.

De acordo com o que recomenda o instrumento normativo do CNJ, a oitiva especial deverá ser realizada em ambiente lúdico e acolhedor, por profissional da área de psicologia e/ou de serviço social – únicas pessoas em contato com a vítima durante o depoimento. O espaço criado na Seccional mineira, com apoio do Núcleo de Administração de Serviços Gerais, tem conexão com as salas de audiências criminais, por meio de circuito interno de televisão, com sistema de áudio e vídeo similar aos utilizados em videoconferências.

Dessa forma, o juiz responsável pela ação pode direcionar as perguntas ao profissional que está em contato com o depoente, via ponto eletrônico. “A iniciativa visa evitar o desconforto e o estresse psicológico vivido por crianças e adolescentes na narração dos fatos ocorridos, cujo abalo emocional pode ser exacerbado pela falta de preparo dos profissionais do meio jurídico para sua inquirição”, explicou Simone Lemos Fernandes.

Ainda segundo a magistrada, o excesso de formalismo e a frieza dos procedimentos judiciais, assim como uma condução insensível da colheita da prova, são inimigos diretos da espontaneidade infanto-juvenil, criando sentimentos de medo e vergonha que podem impedir a clara e adequada descrição dos fatos dos quais tenham sido vítimas.

A juíza explicou que a Justiça Federal tem recebido de países como Estados Unidos e Rússia uma elevada quantidade de material com cenas de abuso sexual infantil produzido e distribuído no Brasil e acessadas no exterior, bem como materiais produzidos no exterior e distribuídos na rede brasileira, o que atrai a competência da Justiça Federal. “Daí o ineditismo da sala de oitiva especial, posto que eu não tenho registro de que haja na Justiça Federal um preparo para atendimento desse tipo de vítima e para a realização desse tipo de oitiva, até mesmo de cuidados com os profissionais que realizam esse trabalho, pois não temos, em nossos quadros, psicólogos e assistentes sociais preparados para lidar com esse tipo de crime. Então é um desafio, pois a própria Polícia Federal tem uma dificuldade imensa com seus agentes de apurar crimes em que crianças sejam vítimas, motivo pelo qual disponibilizamos a nossa sala para caso eles necessitem antecipar algum tipo de prova”, acrescentou.

Um dos objetivos desse procedimento especial é fazer com que a criança não seja obrigada a repeti-lo várias vezes e, portanto, ser revitimizada. Em um processo comum, a criança presta depoimento no conselho tutelar, no juizado de menor, na delegacia e depois é ouvida pelo juízo federal. Com a oitiva especial, o depoimento fica registrado e acessível a todas as instâncias, evitando que a vítima tenha que reviver o sofrimento e garantindo também a validade da prova. De acordo com a juíza federal Simone Lemos Fernandes, “o objetivo maior é a preservação da criança e da prova, além da redução do tempo de andamento do processo e, na prática, o aumento nas condenações. Estudos demonstram que esse aumento acontece sim, justamente por essa maior firmeza e credibilidade que se consegue ter no depoimento de crianças quando ele é feito de uma forma adequada. Muitas das vezes, em tempos atrás, esses depoimentos eram desclassificados por contradições, nervosismo, ansiedade, medo de a criança de estar num ambiente completamente formal, frio e completamente diferente pra ela. Assim, os efeitos são todos positivos, e eu creio que em pouco tempo essas salas vão estar em todo o Judiciário”.

Thainá Salviato

Confira a íntegra desta reportagem na versão eletrônica da Primeira Região em Revista.


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Tribunal Regional Federal da 1ª Região