Fêmeas Memórias – Utopias de uma Borboleta

Por FÁTIMA GUEDES

Fêmeas Memórias – Utopias de uma Borboleta Divulgação Notícia do dia 14/01/2017

A vida da borboleta começa numa lagarta que se move muito devagar sem enxergar muito longe. Em seguida, ela faz um casulo e permanece por muito tempo ali, naquele espaço escuro e silencioso. E então, após o que deve parecer uma eternidade de trevas, ela se transforma em uma borboleta. Charlote Joko – Mestre Zen

No pátio do presídio público de Parintins, no Amazonas, célula da Secretaria de Estado da Justiça (Sejus), aguardava ansiosa pela permissão do carcereiro. O anseio de encontrá-la superava os desconfortos da alta temperatura do forte verão da Ilha Tupinambarana e da aversão natural àquele ambiente. Finalmente, após a entrega dos pertences pessoais aos policiais plantonistas, adentro a espessa grade de ferro que segrega miseráveis delinquentes. As grossas paredes de concreto sujo denunciam o legado inóspito, hostil, repressor destinado a categorias humanas cujos arquivos histórico-pessoais agonizam silenciados.  As condições estruturais daquele casulo prisional representam um verdadeiro desafio para condenadas/os de Justiça alçar voos reumanizantes.  

No trajeto até as celas, cortando um estreito corredor sombrio encontrei apenas homens, dentre eles alguns conhecidos. Timidamente, responderam a meus cumprimentos com um leve sorriso e movimento de cabeça. A maioria dos detentos é jovem; aos demais, não sei precisar, no entanto, aparentavam aspecto cansado e envelhecido. Segundo dados, ali fornecidos, a capacidade do presídio comporta trinta e seis vagas para homens, porém, há mais de cem presos ocupando o mesmo espaço.

Durante o percurso até nossa Entrevistada, não vi mulheres. Avançando pelo mesmo corredor, lá estavam as oito detentas submetidas a processo de “conversão” por três missionárias da Igreja Batista.

Até o momento, não conhecia a Personagem, alvo de nosso interesse militante, e suas Fêmeas Memórias. Acredito que a maioria da população de Parintins também só a conhece via fato massificado pela mídia local – a assassina que matou a universitária no posto de gasolina.

Nessa expectativa, eis que se me apresenta uma jovem morena, de estatura média, cabelos longos e aparência simpática.  Apresento-me, aperto-lhe a mão e ao mesmo tempo revelo o propósito de minha presença ali. Ela retribui o gesto com um tímido sorriso.

Por ordem do carcereiro, ocupamos uma saleta, acredito ser a secretaria ou sala de recepção. Sentamo-nos lado a lado num sofá deteriorado e fui direto ao assunto…

Sem intimidações aparentes, elege-se Borboleta:

“Gosto de borboletas. Sempre gostei. Elas me acompanham nos meus sonhos. Elas sabem voar, pousam nas flores e nos lugares mais bonitos… (pausa). Por isso, tenho várias borboletas tatuadas no braço, na costa, na bunda… Quero ser uma Borboleta”.

Move-se a Lagarta

A cidade de Belém/PA fora o casulo que abrigou Borboleta até os dezessete anos. A família, também paraense, em constante fluxo migratório Belém/Parintins/Belém, perseguia sobrevivência sem tréguas. Nessas circunstâncias, viveu a infância sem vislumbrar horizontes favoráveis a um desenvolvimento humano saudável. Quando precisou falar sobre essa fase da vida, em tom reflexivo, franziu a testa como se cobrasse da memória imagens perdidas ou fatos relevantes. Um breve silêncio fugidio denunciara desinteresse…

“Não guardo lembranças boas da minha infância… Só lembro que foi muito apertada… Pegava muita porrada do meu pai, da minha mãe… Eu digo que eles num gostavam de mim. Minha mãe nunca chegou comigo, me chamou pra sentar e conversar… Nunca me chamou pra ver minhas tarefas… Pra ver o que eu fazia na escola… Ela nunca falou isso pra mim… Eu já recebia conselho das outras pessoas que nada tinha a ver com a minha vida… Elas me davam conselho, eu até chorava… Por isso, eu cismo que minha mãe também não gostava de mim… Vivi muito pela casa dos outros… Com essas pessoas, fui entendendo um pouco da vida e adquirindo até consciência pra mim. É só o que lembro”.

Ao mesmo tempo em que Borboleta mostra-se acessível à invasão de seus ‘arquivos’, é visível a desconfiança expressada no olhar. É entendível, sou uma desconhecida… Sem contar os estigmas já amalgamados em sua existencialidade literalmente condenada não apenas de Justiça. Por esse entendimento, fi-la perceber que, em natureza, somos iguais, comuns e ao mesmo tempo resultado de produções históricas que nos fragmentam e até nos transformam em adversárias ferrenhas.

Ganhar confiança, portanto, exige tempo e, ali, o tempo a mim disponibilizado pela direção do presídio era preciosíssimo. Estrategicamente toquei a arte tatuada em seu braço: ‘- Linda tatuagem! Gosto de tatuagens… Viu a minha?…’ Voltou-se interessada… Por essa brecha, rompera-se o casulo da desconfiança e, mesmo reticente, libera fragmentos de memória:

“Eu tinha uns 9 anos quando a gente veio pra Parintins com minha família, pela primeira vez. Nós morava no Bairro Palmares. Depois, meu pai deixou minha mãe e eu voltei pro Pará com ela. Engravidei com 13 anos. Foi aí que conheci meu marido, um cearense de 27 anos. Ele me quis assim mesmo grávida de 5 meses, sem o filho ser dele. Ele gostou de mim, pediu da minha mãe e eu fui com ele pra Santarém onde moramos 8 anos. Lá, casamos”.

Numa relação conjugal um tanto inusitada, fatores como diferença de idade (14 anos) e até mesmo questões geográfico culturais despertam interesse investigativo…

“Pra mim, ele não tinha defeitos: nunca me bateu, nunca me espancou e não deixava faltar nada em casa…  Além do primeiro filho, tive mais 4 com ele – 2 homens e 2 mulheres. Hoje, o mais velho tem 22 e a mais nova 12. Depois, cometi uma lesice de deixar ele… Ele ficou com os dois meninos e eu com as meninas. O mais velho, que é só meu, ficou com minha mãe. Aí, ele foi embora pra Santarém. Desdaí não vejo meus filhos. Hoje, tô com 37 e não tenho contato com eles. Aí, fiquei por aqui mesmo. Deixei o outro homem porque me batia e agora tô sozinha. Já disse, que foi uma grande lesice que fiz. O cara me seduziu, me apaixonei… Essas coisas… Paguei caro: me tratava mal, me batia, não gostava da minha filha mais velha… A mais nova ainda tava na barriga e ele criou como dele. Até hoje, trata ela como filha dele. Da mais velha, ele não gosta, inclusive, já disse na minha cara que não gosta dela”.

‘Mundana’ Produção

Borboleta cursou até a 8a série do Ensino Fundamental. Sua trajetória escolar pouco ou nada difere da grande maioria de outras e outros com histórico similar…

“Estudei primeiro na Escola “Suzana de Jesus Azedo” e lembro até hoje da professora Mara… Esqueci o outro nome. Era uma pessoa muito legal comigo. Depois, fui pra escola do Bumbódromo e já de grande, com 30 anos, estudei na Escola “Beatriz Maranhão”. Eu era uma boa aluna. Minha mãe nunca teve preocupação comigo; nunca foi chamada sobre meu respeito… Nunca maltratei professores; nunca fui pra secretaria… Parei de estudar pra dar oportunidade pras minhas filhas… Não tinha trabalho… Ou eu ou elas. Aí, caí na vida de mundana (como dizem) e passei a trabalhar como mulher de programa”.

 Nosso diálogo alcança íntimas dimensões… A partir da escuta e acolhimento, a desconfiança inicial cede lugar a cumplicidades históricas entre fêmeas que se reconhecem fragmentos comuns. Borboleta vê na ‘estranha’ interlocutora uma extensão de si mesma: motivações e razões que nos segregam são as mesmas que, naquele momento, nos aproximam – o ser mulher. Conquistara-lhe a confiança…

“Como disse, virei mulher de programa pra me sustentar e sustentar minhas filhas. Quando eu tava com meu marido eu era só dele mesmo. Só fui isso quando deixei dele… Não é fácil este caminho. A gente tem que suportar vários tipos de homem – fede, cheiroso, bonito, feio, grosso, mal educado… Eu ficava com eles pela necessidade do dinheiro, não por gostar… Nunca gostei de homem que compra mulher.  Meu trabalho era profissional mesmo. Uns, davam cinquenta reais; outros, cem reais, dependendo se eles gostassem do programa. Se quisessem mais de duas horas era cem reais; só uma hora era cinquenta. Uns até que davam uma proposta boa”.

Incógnitas são desafios para se desnudar aparências factuais. Logo, é pertinente entender os ‘modos de produção’ da ‘profissional’ Borboleta… Aquele ser/mulher, ‘avesso do avesso’ no enfrentamento a exclusões, desigualdades, enfim, ao conjunto de transgressões sistêmico estruturais esclarece os métodos utilizados na ‘mundana’ produção…

“Nunca tive agenciador. Os clientes me ligavam e eu ia. Durante os programas, nenhum homem me obrigava a fazer o que eu não queira, aliás, homem nenhum me obriga a fazer o que eu não quero; só se me amarrar. Fazia aquilo pela necessidade, só pelo dinheiro mesmo; não por prazer. Nunca senti prazer com outro homem a não ser com o meu marido, o primeiro, o pai dos meus filhos, esse que eu amei e amo até hoje. Da primeira vez que fui fazer programa, não me senti bem naquele ambiente. Minha amiga percebeu… ‘Tu não é obrigada a fazer o que não quer…’. Nisso, chegou um cliente: ‘Ei, morena, quanto tu quer pra ir no quarto comigo?’ Olhei pra ele… ‘Não quero nada não’, eu disse. Eu te pago bem, insistiu. Aí, eu tava precisando mesmo e fui… Aos poucos, já fui pegando aquele jeito… Eu e minha amiga entramos juntas no mesmo quarto: ela ficou com um homem e eu com o outro. Tudo o que eu via ela fazer, eu ia lá e fazia… E fui seguindo em frente, já fazendo sem medo. Porque antes eu tinha medo…”.

É possível, depois de tantos enfrentamentos por migalhas de sobrevivência, Borboleta sentir medo do novo ‘trabalho’?!… Constata-se, no entanto, que o conflito dialoga com fantasmas arraigados em sua desumanizada trajetória cujos impactos, ela rejeita. Paralelamente, resguarda a referência do mito da respeitabilidade materna…

                  “Minhas filhas nunca souberam o que fazia. Eu tinha vergonha que elas soubessem. Eram crianças. Tinha medo que elas seguissem o meu caminho. Quando saía, ficavam com minha mãe e eu inventava pra elas que eu ia pra casa de alguém, pra praça com as amigas… Não nego, tinha medo daquele exemplo pra elas”.

                Além de ‘garota de programa’, Borboleta trabalhou como doméstica. Não esconde uma sutil vaidade, quando fala da experiência…

                “Trabalhei em várias casas, aqui em Parintins. Trabalhei no Baranda, com sêo Mário Flávio, sêo Hermes… Tudo por aí…. Tem muita gente que me conhece. Todos me pagavam um salário. Entrava às 7 da manhã e saía às 5 da tarde. O sêo Mário Flávio chegou a assinar minha carteira… Mas, me tratavam bem. Minhas patroas eram sempre muito legais comigo. Até hoje, quando eu preciso, me atendem”.

O cuidado com a integridade das filhas é demonstrado insistentemente durante a conversa. Depois da segunda relação amorosa também falida, Borboleta fechara o ‘casulo’ para possíveis relacionamentos sob o mesmo teto…

“Desde o momento que deixei o pai das minhas filhas, prometi que não queria mais outro homem dentro da minha casa eu morando com as minhas filhas. Não consigo imaginar o homem que está comigo assediando minhas filhas… Nunca! Pra evitar, é melhor eu sozinha com elas e eles no canto deles. Homem é homem; não confio”.

Comprovadamente, sentimentos relacionados à maternidade independem de padrões, distâncias, tempo e circunstâncias… São laços indeléveis entre célula e broto, ainda se a natureza da célula tenha sido maculadaA questão dissolve a aparente armadura da Mãe…

“Os filhos de Belém, eu perdi o contato totalmente… (pausa, enxuga os olhos) Hoje, já são rapazes. Comigo está a de 12 anos e a de 17; aliás, agora estão com minha mãe. Elas vinham me visitar aqui; só que eu não me sentia bem, elas virem nesse lugar. A menor chora muito. Se é pra eu sentir a dor da minha filha e eu chorar junto com elas, prefiro que elas não venham. E quando elas vêm, recebo aqui na frente. Converso com elas, elas tomam bênção e vão embora”.

Histórico Infrator

Pela segunda vez, Borboleta experimenta a hostilidade das algemas…

“A primeira vez fui presa por droga, mas eu não tive nada a ver. Era de noite. Eu tava pra escola e minhas filhas com a minha mãe. Nunca deixava elas sozinha. Nisso, a polícia perseguia um rapaz com droga. Ele arrombou a porta da minha casa e se escondeu. Eu não conhecia o rapaz. A polícia pegou ele, interrogou de quem era a droga e, em momento algum, ele me acusou. E, realmente, a droga não era minha. Aí, o policial começou a gritar comigo: ‘fala logo que a droga é tua, porra! Como que o cara foi entrar na tua casa?…’ Eu não conhecia o rapaz. Isso foi em 2012. Como não tinha condições de pagar, a justiça me deu advogado público. E por falta de provas contra mim, a juíza me liberou 6 meses depois. Quero dizer que a única droga que usei era bebida e é por ela que agora estou aqui. Só bebida mesmo, outras drogas, não”.

Avançavam as horas e também o tempo a nós disponível, no entanto, a pretensão de provocar o debate social nos forja elucidar resíduos subjetivos do histórico infrator trazido por Borboleta… Ademais, o bem e o mal; o justo e o injusto; o certo e o errado são reproduções sociais, sequelas de conflitos não ou mal resolvidos…

Já briguei muito… Com homem, com mulher… Na bola, se uma colega me empurrasse, me xingasse, eu já partia pra agressão, pra tomar satisfação, na briga. Pegava também corda dos outros. Eu via as pessoas fazerem ignorância e eu achava bonito… Não queria papo… Depois, eu me arrependia. Chegava em casa e até orava: ‘Ó, Meu Deus do Céu! Bote outro coração em mim. Tire esse coração ruim…’ Era assim que acontecia. Hoje, aqui, em penso muito: não quero mais isso; nem pra mim nem pras minhas filhas. Elas podem aprender a ser assim também. Se isso tá acontecendo comigo pode acontecer com elas e eu não quero. Quando eu me alevanto ou quando eu vou dormir, oro muito; choro… Hoje, penso muito na vida; no que é o certo, errado…”.

As percepções alcançadas sobre os fatos que conduziram Borboleta à ‘perda da liberdade’ possibilitam estabelecer conexões e mesmo cumplicidades com a herança sócio afetiva da personagem…

“Naquela noite, alguma coisa, aqui dentro, me dizia pra ir pra casa, mas, não ouvi e foi aí que tudo aconteceu. Eu e minhas amigas tava bebendo lá no posto de gasolina, e a universitária bebia, na outra mesa, perto da gente. Ela começou a dançar, quando a sandália dela caiu do meu lado e eu chutei de volta: ‘lá vai tua sandália, coração’. Ela não gostou, começou me xingar, me chamar um monte de palavrão e veio pra cima de mim. Eu não gosto que ofendam minha mãe. Aí, eu também ofendi ela com outros palavrão. Nisso, eu virei de costa pra tomar outra dose de Skarloff. Ela me pegou pelo cabelo e o cara dela me deu um murro. Eu caí. Ela caiu em cima de mim. Nisso, eu tinha uma faca; só que não me lembrava. A colega que tava comigo, falou: ‘Dá uma facada nela’. Foi que eu lembrei. Aí, os amigos da moça foram me chutando, me batendo… Eu tinha que me defender de alguma forma. Aí, eu peguei a faca e furei ela na costela, na coxa e no pescoço. Essa do pescoço foi a causa da morte. Eu não tive intenção de matar ela… Nós tava brigando. Era eu ou ela. Quero que Deus me perdoe por tudo o que eu fiz. Juro que não queria aquilo… Nunca tinha matado ninguém. Não conhecia aquela mulher; nem sei se tinha filhos… Um dia, no meu julgamento, vou pedir muito perdão pra família dela. A dor que a família dela está sentindo poderia ser minha, pelas minhas filhas… Por isso, não durmo tranquila, penso muito… Eu oro imaginando…

Por que razões, naquela noite, Borboleta portava uma faca?

“Naquela mesma noite, antes de ir pro posto, estava num bar. Lá, já tinha discutido feio com um cara que queria roubar. Não gosto disso. O cara me prometeu umas porradas. Ele era um homem e eu não ia brigar com homem. Aí, ele levantou a camisa e mostrou uma faca. Pensei: ‘Ah, ele tá armado!…’ Fui em casa pegar uma faca pra me defender. Quando voltei pro bar ele não tava mais. Daí, os amigos me convidaram pra ir pra praça. De lá, fomos pro posto onde aconteceu a desgraça”.

Estimulantes de Utopias

Prisões, independentemente da formatação, são espaços inéditos para acalanto de utopias… Embora algemada, Borboleta não perdeu a capacidade de sonhar e acreditar em possibilidades libertárias…

“Tenho um sonho não só pra mim, mas pras minhas filhas também. Quero voltar pra Belém, arrumar um trabalho, cuidar delas e voltar para a igreja. Quero ser feliz. Ser outra mulher; não mais aquela. Sou evangélica, batizada e me afastei da igreja pra ficar nessa vida mundana, como as pessoas falam. Esse pecado eu carrego na vida. Se eu tivesse na igreja isso não tinha acontecido comigo. Sonho também fazer uma faculdade e até ser uma policial… Mas… ainda não deu pra chegar lá… Só que Borboleta voa… (ri)”.

Dentre outros sonhos amanhados nos insondáveis diálogos com as incógnitas do presídio, vê no trabalho a porta de superação…

“Antes, já trabalhei num supermercado. O que mais preciso é de uma chance de trabalho. Qualquer trabalho bom, direito… Qualquer coisa que ganhe dinheiro pra manter minhas filhas, pagar minha luz, minha água e o que eu preciso. Mulher de programa nunca mais. Isso eu prometi pra mim, pra Deus, pra várias pessoas. Não quero mais isso pra mim”.

Sobre novos amores…

“Pretendo arranjar um homem trabalhador, companheiro, que me respeite, mesmo que eu já esteja velha… (ri). Mas isso, só depois que as minhas filhas já tiverem os maridos delas… Antes não”.

O tempo se esgotara… As grades do presídio determinam a separação de nossas vidas, de nossos mundos, menos de nossa natureza humana… Entre nós, uma fêmea empatia se estabelecera apontando possibilidades ainda não visualizadas… E antes de se fecharem as grades, Borboleta deixa um recado às parceiras de história…

“Sigam uma vida que não seja a prostituição. Muitas amigas querem sair dessa vida; outras não, porque não têm emprego… Acham que ganham dinheiro fácil como mulher de programa. Hoje, sei que ganhar dinheiro vendendo o corpo não é legal. Não é certo. A mulher pode pegar doenças porque às vezes transa sem camisinha; pode ser só usada pelos caras e até ser morta…”.

Os códigos silenciosos traduzidos no olhar da Personagem, naquele momento, revelam que há muito ainda para ser dito, ouvido e decifrado… É necessário, porém, exercício de escuta solidária…

Nas despedidas, o aperto de mão demorado e o compromisso com retornos dialógicos humanizantes, mesmo tardios…

Temos dito…

Borboleta é mais uma condenada, vítima das contradições do Estado Democrático de Direito. A negação a uma vida com dignidade conduz indubitavelmente excluídos a situações perversas.

Até onde as algemas lhe permitem, Borboleta se arrisca ‘voar’ na possibilidade de ‘ser feliz; ser outra mulher’… Ao vislumbre, o Educador Paulo Freire conceitua Inédito Viável: “fazer do sonho o motor da história, movimento das possiblidades e de alternativas que preencham o vazio entre o sonhado e o realizado, a partir de atos criativos”. Há de se entender, que a utopia cultivada pela presidiária exige reinvenção de si mesma e de toda uma lógica existencial – pesado desafio à sua condição humana…

                 Nessa busca, porém, aponta caminhos: a igreja e a chance de um trabalho bom, direito. Em situações congêneres, a religião é um dos primeiros ‘suportes’ apontados pelas mulheres… Em relação ao trabalho bom, direito… – mediador essencial das transformações pretendidas – será outro desafio… Até que o sonhado chegue a realizado, Borboleta terá asas suficientes?…

 

Notas:

Lesice – No coloquial, o mesmo que leseira; tolice.

Desdaí – Desde + aí.

Inédito viávelDicionário Paulo Freire, 2a edição. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

Por FÁTIMA GUEDES