VIDA E MORTE ... Felix Valois

VIDA E MORTE ... Felix Valois Félix Valois Notícia do dia 01/07/2015

No momento da vida em que me encontro a ida a velórios é recorrente. Partem os mais velhos, vão-se também os coevos, tudo a demonstrar com mais nitidez que está próximo o chamamento para a “voluptuosidade do nada”. E não há como deixar de responder. Ainda é inevitável, infelizmente, a certeza de que o contrário morte um dia superará o contrário vida, realizando-se o salto de qualidade, em que a transformação radical se opera, deixando para trás aquilo que um dia também já foi novo. Se assim não fora, como poderíamos evoluir? Mas que é triste e chato, lá isso é.

                  

Em menos de cinco dias vi partirem dois homens bons. Na sexta-feira foi a vez de Demósthenes Buzaglo. Na segunda, viajou Ivan de Azevedo Tribuzzy. Ambos foram devida e justamente homenageados e chorados por familiares e amigos, para os quais aquela imobilidade do corpo estendido e velado é imagem crudelíssima, a ferir fundo os sentimentos mais primários. É uma saudade atroz, sufocante e inafastável, que cresce como onda gigantesca e se derrama impiedosa no que há de mais recôndito em nosso ser. E não há conforto nem paliativo. É a dor pura e simples, na sua expressão mais feroz, sem recurso para qualquer instância que possa pelo menos amenizá-la.

                  

Duas vezes sofri assim. Com apenas quinze anos de idade, vi a morte ceifar abruptamente a vida do professor Felix Valois Coelho, meu pai. Eu não acreditava no que via. Era um homem de físico frágil. Era terno e gentil. Não me era dado imaginar como seria possível viver sem ele, sem a sua palavra amiga, sem o seu abraço acolhedor, a traduzir o que pode haver de mais nobre na paternidade. Quando aquele carro sinistro lhe transportou o caixão, parecia-me que levava dentro, igualmente, uma injustiça bizarra e macabra, capaz de me privar, sem que nem porque, de algo tão importante nos meus tenros dias de adolescência.

                  

Com dona Lucíola de Magalhães Coelho, minha mãe, convivi até mais tarde. Quando ela nos deixou contava noventa e três anos e eu estava às portas dos sessenta. Quem disse que a dor foi menor? É certo que já não havia a brutalidade da surpresa. Em compensação, e para pior, era o rompimento de uma convivência com uma mulher que se impôs aos filhos não apenas pela figura materna, mas, principalmente, pela maneira corajosa com que enfrentou a perda do único companheiro, transmudando-se ela própria na comandante da família. E olha que não foi fácil. Quando papai morreu, não tínhamos de onde tirar um tostão nem para comer. Mamãe, com apenas o curso primário, foi à luta, enfrentou gregos e troianos, e logrou nos conduzir a todos pelos caminhos da correção e da honestidade.

                  

São saudades que não se apagam. São lembranças de que o decurso do tempo pode até alterar os contornos, tornando-os menos nítidos, mas nunca suprimir de todo. Elas se entranham em nós e nos acompanham para sempre, com maior ou menor intensidade, a depender do momento por que passamos. Se de alegria, a atenuação é óbvia. Mas se é a tristeza que nos assalta, elas voltam com carga renovada, na eterna bipolaridade da vida.

                  

Recordo-me de que, em 1996, meu filho Alfredo sofreu um violento acidente de automóvel. Na cirurgia a que se submeteu, uma falha na anestesia lhe provocou parada cardíaca, da qual ele só se recuperou no terceiro choque do desfibrilador. Mas ficou em coma e nesse estado foi internado em uma Unidade de Terapia Intensiva. Era impossível, ao vê-lo naquela situação, deixar de conjecturar se teria eu de passar, então em polo contrário, pela mesma tragédia que foi a morte de meu pai. Alfredo tinha apenas vinte e dois anos e me era insuportável a ideia de que ele poderia ser arrancado de mim com tão pouca idade. Não o foi, felizmente, de tal maneira que me pode brindar com a vinda de Lauro e de Ayla, com os quais, além de com os outros cinco netos, vou entretendo os dias que me restam.

                  

Assim segue o andor. Só posso dizer que, na longa estrada já percorrida, fui deixando para trás as vaidades e os rancores. Fui largando à beira do caminho todas as inutilidades que nos tornam mais difícil o caminhar. Não me despi de todos os sonhos e ilusões da juventude. Nem poderia fazê-lo, porque, como não cansava de proclamar meu amigo Álvaro Gaia Nina, quem um dia abriu seu coração para o mundo, nunca mais vai conseguir fechá-lo. Por isso ainda sonho com o meu país trilhando veredas mais serenas, sem corrupção e sem o PT, o que, de resto, dá no mesmo. Sonho com um Brasil sem cotas e sem bolsas, onde todos possam estudar e crescer com seus próprios méritos, sem essa tolice de preconceito racial e das medidas ridículas que o governo adota, a título de combatê-lo, mas que, no final das contas, vão sempre na contramão.

                  

“Assim, quando mais tarde me procure, quem sabe a morte, angústia de quem vive”, eu possa fazer a viagem sem retorno tendo cumprido o meu dever. Quando meus filhos e netos de mim se lembrarem, que não seja com nenhum tom de amargura, por isso que terão a certeza de que foram por mim amados, muito amados, com a toda a intensidade de que sou capaz.

                  

Para todos os homens bons, a terra lhes será leve.

* Felix Valois é É advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída pelo Senado Federal para elaborar a proposta de reforma do Código de Processo Penal.