Indígena diz que 19 de abril não existe: ‘Estamos na história todos os dias’

Desde que entrou na universidade, em 2010, Ariabo vai para a casa da mãe apenas nas férias de fim de ano e tem vontade de voltar, como muitos indígenas que deixam suas aldeias.

Indígena diz que 19 de abril não existe: ‘Estamos na história todos os dias’ Notícia do dia 19/04/2015

Aos 25 anos, o indígena Luciano Ariabo Kezo vai concluir em 2015 o curso de letras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e quer fazer mestrado. Em 2012, escreveu um livro que ajuda a ensinar a língua umutina-balatiponé, relatada pela Unesco como “extinta”, e programa a segunda obra. Na próxima semana, vai integrar a comissão brasileira no Fórum Permanente sobre Questões Indígenas da ONU, no qual discursará em inglês e espanhol sobre o direito dos povos indígenas no Brasil e no mundo, abordando problemas como o suicídio e a automutilação, e desconstrói estereótipos na Semana dos Estudantes Indígenas da UFSCar, em São Carlos (SP), realizada como contraposição ao 19 de abril

“Queríamos aproveitar esse momento, em que as escolas estão chamando, e mostrar que não existe ‘Dia do Índio’. Parece que só somos lembrados nessa data. Estamos na história do Brasil até hoje, todos os dias. Vê-se o índio no pretérito. Para ser índio, tem que ser o que era no século 16, e essa imagem do passado também é uma construção”.

Sentado ao lado da quadra de esportes em que ocorria o encerramento do evento, ele mostrou objetos e adornos. Um instrumento feito de casco de anta se sobressaía no cesto e Ariabo contou que a carne do animal é consumida na reserva de onde veio, em Barra do Bugres (MT), a 1.459 km de São Carlos (SP), onde hoje vive com a companheira e os dois filhos. “Minha vó fazia na brasa, retirava pedaços aos poucos e amassava no pilão para fazer uma paçoca com farinha”, disse ele, que sente falta da comida e das pessoas.

Desde que entrou na universidade, em 2010, Ariabo vai para a casa da mãe apenas nas férias de fim de ano e tem vontade de voltar, como muitos indígenas que deixam suas aldeias. Nos eventos, esses jovens que saíram de casa se conhecem, estudam propostas para o ensino superior e se fortalecem politicamente. “Muitos entram, chegam para atender necessidades do povo, adquirir as armas do sistema para defender e preservar”, explicou.

Para a professora Roseli de Mello, que também representará o Brasil no Fórum da ONU, “hoje a universidade é muito mais bonita e inteligente, e o papel indígena é fundamental nisso”. Mas a aceitação é recente. “Perguntavam o que o índio iria fazer aqui na UFSCar. Diziam que um índio que estuda não é mais índio”, contou em sua palestra na Semana.

Na aldeia Bacalana, uma das duas que compõem a reserva no Mato Grosso, a média é de um a dois universitários por família, segundo Ariabo. Apenas na casa dele, na aldeia Umutina, a mãe pode se orgulhar de ter dois filhos formados, três cursando a universidade e dois sobrinhos e duas noras também no ensino superior, em cursos de biblioteconomia a agroecologia. Ter parte da família por perto na própria UFSCar ajudou Ariabo a superar a perda do pai, em 2012, e o tratamento da filha mais nova, que nasceu com uma cardiopatia.

“Ela se chama Isabele Ine. Ine quer dizer solidez. Para os umutinas, o primeiro nome está relacionado ao sonho e o segundo nome vem depois, com as aptidões. A criança vai adquirindo experiências e superando desafios. O nome vem do desafio”, contou. No caso de Ariabo, a família vem de um clã que adotava a cosmologia, algo externo à Terra, para nomear. “Ari” pode ser entendido como Lua e “Boropo” como esfera celeste, o céu no sentido material.

Clãs, porém, não são mais comuns. Existiam quando a população umutina ocupava um amplo território. Hoje, na reserva, há cerca de 600 descendentes de uma época em que restaram apenas 23 adultos, além de órfãos e anciãos.

História

“Os umutinas dominavam uma grande área, mas havia o extrativismo de poaia e, quando os extrativistas e o povo se encontravam, havia combate e fugitivos. Por fatores externos como esse, eles ficaram confinados entre os rios Bugre e Paraguai, mas havia contato com pessoas pacíficas e o sarampo, a coqueluche e a tuberculose se espalharam. Eles não tinham anticorpos, os remédios naturais não tinham efeito, e quase desapareceram”, contou Ariabo.

No início do século 20, houve a interferência do Marechal Cândido Rondon e, a partir da década de 1930, o Serviço de Proteção aos Índios começa a levar outros povos, como os paresi, para residirem na aldeia, que corria risco de perder território por conta da queda populacional. Atualmente, são nove povos que, mesmo com origens diferentes, se identificam como umutina-balatiponé.

“É o aldeamento. O SPI ‘acolhe’ os órfãos e velhos que ficaram após as doenças e oferece remédios industrializados, leva outros povos para formarem famílias. Minha avó era da primeira turma de transferidos e até a morte falava o paresi, mas não era o mais comum”, afirmou Ariabo.

Ele explicou que os não-indígenas tentavam imprimir sua cultura e proibiam o uso de adornos. “Achavam que a forma como nos comportávamos era de animais. Havia também a questão da virilidade. Os homens do nosso povo costumavam usar o cabelo bem longo e quem trabalhava pela desconstrução afirmava que isso era característico das mulheres”, disse. Os brancos também queriam estabelecer o português e, como os que chegavam não sabiam a língua dos que estavam estabelecidos, e vice-versa, ele acabou se transformando no idioma usado no âmbito social.

Os 23 adultos sadios que fugiram do aldeamento, contudo, conseguiram preservar os costumes. E foi com um deles, Julá Paré, que Ariabo conheceu parte dessa história. “Ele integrou o grupo. Saiu de lá adolescente. Tinha perdido o irmão, o pai e a mãe. Achou que se afastar aliviaria a dor. Trabalhou, viveu na cidade, voltou e teve uma casa afastada e depois se instalou mais próximo da minha família”.

No começo, Julá não gostava da ideia de repassar os conhecimentos. “Uma das características dos umutinas é o sentimentalismo e falar faria ele lembrar das perdas. Minha mãe conversava, falava que era importante ele passar para os mais jovens, aí ele começou a transferir”, disse Ariabo.

Com o ancião, o jovem aprendeu músicas, danças, detalhes da língua. Tudo a seu tempo. E o conhecimento não ficou restrito a ele. Julá participou de encontros do grupo de jovens criado em 2000 pelo cacique Valdomiro Kalomezoré para resgatar a cultura dos umutinas.

O grupo ganhou força com a expansão da primeira escola da reserva. Até 2003, ela oferecia apenas de 1ª a 4ª série, e, quando passou a oferecer o ensino fundamental completo e o ensino médio, virou lugar de concentração, propiciando a busca por identidade de uma forma mais organizada.

“O cacique levava referências de estudiosos como Harald Schultz e o Julá contava quando estavam errados. O grupo recuperou 17 cerimoniais, pintura corporal, cantos, narrativas. Eventos criados para as práticas foram gerando o interesse do povo. Era como se fosse um jogo de futebol. Havia os participantes e atraía a atenção. Era novidade, e os velhos se emocionavam porque imaginavam que não veriam mais”.

Com o grupo e os estudos, os mais jovens perceberam que a cultura – incluindo estruturas sociais, agricultura, pesca – nunca desapareceu e que mesmo a língua materna, o umitina-balatiponé, declarado “extinto” pela Unesco, estava vivo.  “Por isso que o termo mais apropriado é revalorização da língua, e não revitalização, porque ela não morreu”.

Fonte: G1