Utopia em construção - Lágrimas do Sol

A questão evoca rememorar e tirar do silêncio, das sombras colonizantes o bravo Kaçaweré* para que se permita resgatar o poder nativo e voltar a entoar canções de vida, de glória e de liberdade

Utopia em construção - Lágrimas do Sol Foto: Denise Albuquerque (EmPauta) Notícia do dia 20/06/2023

O silêncio cumplicioso do ritmo folclorístico de Parintins comanda bailados corridos* sob lágrimas e gemidos... Não raro, a agressividade rítmica ensurdece as massas a ponto de afetar a lucidez e até confundir cultura com estupidez.

 

Na contramão de possível ensurdecimento, viajo no tempo em que as toadas dos Bumbás se ritmavam em poesias recheadas de anúncios, denúncias e etc.... Por essa trilha, retorno a 2008 e aproveito para lavar a alma nas Lágrimas do Sol - teçume poético de Paulinho Du Sagrado em parceria com Jacinto Rebelo e Nair Blair.

 

Em essencialidade, o brado poético trazido por Paulinho Du Sagrado denuncia as injúrias contra sociedades primitivas e respectivas culturas manifestadas nas várias formas de colonização. Lágrimas do Sol, portanto, é uma toada profética de lamento, saudades, amor e de certeza num vir-a-ser* configurado em luta, em determinação através da teatralização apaixonada do torcedor que fazia/faz e vive até hoje o boi bumbá.

 

A questão enseja reflexão sobre o processo histórico que se impõe como desafio às novas gerações, a novos tempos em que se cultivam ideários legitimamente culturais. A arte, enquanto expressão da vida, recria-se e reinventa-se como instrumento aglutinador da cultura, de memórias ancestrais via comprometimento daqueles e daquelas que se propõem construir o belo a partir do esplendor da quimera.

 

Sob o mesmo olhar, a questão evoca rememorar e tirar do silêncio, das sombras colonizantes o bravo Kaçaweré* para que se permita resgatar o poder nativo e voltar a entoar canções de vida, de glória e de liberdade. A poética também instiga mergulhos profundos nas águas perdidas no tempo: resgates de preciosos tesouros da ancestralidade cultural amazônida ainda cultivados nas vivências das nações Kamayurá, Caiapó, Carajá, Tupinambá, Hexkariana, Sateré-Mawé, Atroari, Xavante, Mundurucu, Ianomâmi, Dessana, Marubo, Andirá e de tantas outras perdidas e eliminadas pelo fuzil e pelas lábias do dominador.

 

Numa perspectiva poética e ao mesmo tempo de sobrevivência, a dinâmica dos bumbás incorpora-se à arena na disputa não só do brilho, das cores, das fantasias, mas, acima de tudo, na disputa do pão independente da dinâmica de produção. Tal qual a ousadia dos guerreiros de Tróia, os bumbás viajam nas mais loucas utopias e com ousadia invadem sonhos, corações e até valores. Dentre outros elementos, Lágrimas do Sol aponta transgressões ao processo transgressor de recriação da arte folclórica Parintintin: o visionário forja a importância de uma nova consciência vislumbrando um destino alvissareiro para a Ilha Tupinambarana e/ou Ilha do Folclore, assim propagada.

 

Nessa projeção, o índio é o elemento base, agente sensibilizador e reconstrutor da própria liberdade e do nativo habitat. Por essa via dialógica libertária, o nativo percebe-se prisioneiro de massacres oficializados no determinismo genocida. Percebe também de maneira ampla o oficialismo cruel imposto ao sonho primeiro: a correnteza sistêmica submete à tormenta a canoa da vida, aliena e poda a capacidade de luta, de organização e recriação da legítima historicidade.

 

Com sutileza, o visionário vive a própria emoção e viaja na paixão: Meu boi Garantido / Meu amor primeiro / Meu Boi verdadeiro / Um sentimento inteiro... Ao mesmo tempo, abduzido pelas lágrimas purificadoras do sol acasala anúncios e denúncias: reveste-se de um sentimento avermelhado e revela sem medos a manipulação da lógica globalística sobre o folguedo transformado em mercadoria.

 

Lágrimas do Sol nos induz clarear a retina embaçada de toxicidades midiáticas permitindo-nos problematizar cultura popular x cultura de massa???... Enfim, generalizando o contexto dito folclórico, leva mais quem fantasia melhor a interpretação e quem ardilosamente convence a galera/massa sustentar a indústria cultural do festival folclórico de Parintins.

 

Importante ressaltar: na contramão da ética industrialista, a utopia impulsiona o visionário a teimosiar perspectivas - uma outra Ilha do Folclore possível e digna para a Mãe Terra e respectivos elementais; onde as comunidades tradicionais, os povos nativos, homens e mulheres de boa vontade reencontrem a harmonia, assim como EUs perdidos e/ou aprisionados...

 

Após remadas inglórias; após tantas lágrimas derramadas, resta ao visionário torcedor unir forças e, por último, invocar Deus Tupã como resposta derradeira à recondução de Kaçauerés ao encontro dos próprios valores culturais subalternalizados pelo massacre colonialista.

 

É a utopia em construção... A toada testemunha!

 

Falares da casa

Kaçauerés – Caçador, na língua Sateré Maué, tronco Tupi. Na dinâmica do festival folclórico de Parintins, trabalhadores que fazem o traslado das alegorias do Boi Bumbá Garantido. (Com informações do Indigenista João Melo Farias e do Jornalista e pesquisador Fred Góes).

 

Bailados corridos – Ritual coreográfico do Boi bumbá Gantido.

 

Vir-a-ser – “Processo contínuo de transformação. Vida é movimento. É como o rio”. (Heráclito)

 

Maria de Fátima Guedes Araújo

Caboca das terras baixas da Amazônia. Educadora Popular, pesquisadora de saberes popular/tradicionais da Amazônia. Fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular em Saúde (ANEPS). Autora das obras, Ensaio de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.

 

Por: Fátima Guedes. Edição: Floriano Lins