O espião que usava o status secreto para aterrorizar e abusar da namorada

Governo britânico tentou impedir a publicação da reportagem da BBC sobre o agente que utilizava sua posição para dominar parceira e chegou a atacá-la com facão.

O espião que usava o status secreto para aterrorizar e abusar da namorada Identidade das vítimas foi mantida em sigilo — Foto: BBC Notícia do dia 20/05/2022

Um espião do serviço doméstico de segurança do Reino Unido, o MI5, usou seu status para aterrorizar e abusar de sua namorada antes de se mudar para o exterior e continuar o trabalho de inteligência enquanto estava sob investigação, revelou a BBC.

 

Um vídeo a que a reportagem teve acesso mostra o homem ameaçando matar a mulher e a atacando com um facão.

 

A identidade do espião, que não é britânico, não pôde ser revelada, apesar das evidências de que ele é uma ameaça para mulheres, pois o governo entrou na Justiça contra a BBC para bloquear a publicação.

 

As evidências mostram que ele é um extremista de direita com um passado violento.

 

Em uma batalha legal sem precedentes, a corporação argumentou que as mulheres tinham o direito de conhecer sua identidade e isso protegeria potenciais vítimas.

 

Mas a BBC resistiu com sucesso à tentativa do governo de impedir a publicação da ampla investigação.

 

Beth, que é cidadã britânica, conheceu o agente do MI5 em um site de namoro. O casal passou a viver juntos no Reino Unido.

 

Beth filmou o ataque em seu celular — Foto: BBC

 

No começo, ela diz, ele era "encantador". Eles pareciam ter muito em comum.

 

Mas com o tempo, ele se revelou misógino e extremista, obcecado por violência e crueldade. Beth - nome fictício - diz que ele a agrediu sexualmente e também foi abusivo e coercitivo.

 

Ela diz que ele usou sua posição nos serviços de segurança britânicos para aterrorizá-la.

 

"Ele tinha controle total. Eu era uma sombra de quem sou agora", diz ela.

 

À medida que o relacionamento se tornou mais abusivo, a saúde mental de Beth se deteriorou.

 

"No final do relacionamento, ele ditava todas as horas do meu dia - onde eu ia, quem eu via, como trabalhava, o que fazia no trabalho, o que usava".

 

X a fez "sentir-se absolutamente inútil" e usou "o fato de eu ter problemas de saúde mental para me intimidar e me fazer sentir mais vulnerável".

 

Ele coletou armas e a fez assistir a vídeos terroristas de execuções e assassinatos, diz ela.

 

"Ele fazia tanto terror psicológico que eu acabei tendo um colapso, porque estava com muito medo de tudo - por causa de como ele me fez pensar, as pessoas com quem ele estava envolvido e as pessoas para quem ele trabalhava".

 

Beth diz que X disse a ela que trabalhava como informante pago para os serviços de segurança britânicos - um agente ou fonte secreta de inteligência humana (CHIS, na sigla em inglês), para usar o termo formal - e se infiltrava em redes extremistas. Ela estava ciente de que ele estava tendo reuniões com os treinadores, recebendo dinheiro e recebendo equipamentos desses grupos.

 

Inicialmente, segundo ela, ele manteve seu nome verdadeiro escondido. Nossa investigação estabeleceu que X passou anos trabalhando como CHIS para o MI5, usando vários pseudônimos.

 

O serviço de segurança gerencia agentes em redes terroristas, informantes que trabalham secretamente para os seus funcionários, os oficiais do MI5.

 

Direitos controversos autorizam os agentes a cometer crimes para manter seu disfarce, mas apenas para acessar informações que salvam vidas, interromper crimes mais graves ou garantir a segurança de um outro agente.

 

Mas esses poderes não deveriam abranger também ações nas vidas privadas dos espiões.

 

Beth diz que X disse a ela que não seria capaz de denunciar seu comportamento por causa de seu status na corporação.

 

"Isso significava que eu não podia falar sobre nenhum comportamento dele em relação a mim, qualquer violência que eu sofri, sexual ou física, porque ele tinha colegas em cargos altos que sempre o apoiavam, que intervinham e que ativamente me matariam, se eu falasse."

 

X foi pago para se infiltrar em redes de extremistas de direita, mas as evidências a que tivemos acesso mostram que suas próprias opiniões alarmantes eram genuínas.

 

Beth diz que X elogiou vários assassinos em massa da supremacia branca e declarou sua intenção de cometer atos semelhantes.

 

Em casa, sua violência foi direcionada a Beth. Em um vídeo, o agente do MI5 é visto atacando-a com um facão.

 

O incidente foi filmado por Beth em seu celular. Pouco antes do ataque, ela pode ser ouvida dizendo que estava preocupada em ser morta e que o comportamento dele com ela era inaceitável.

 

X afirma que vai matá-la, sai da sala e retorna segurando um facão - que ele levanta acima da cabeça dela.

 

Quando ela diz que o vídeo pode ser entregue à polícia, X lança um ataque com a arma e os punhos. O vídeo corta em meio a gritos.

 

Beth conseguiu lutar com X, mas ele tentou atacá-la novamente horas depois com uma faca, tentando cortar sua garganta. Ela diz que mordeu a mão dele para se proteger.

 

A polícia visitou a casa do casal após o ataque, mas nossa investigação descobriu sérios problemas na resposta das autoridades.

 

X foi preso, acusado de agredir Beth e compareceu ao tribunal. No entanto, enquanto ele estava no local, o Serviço de Promotoria da Coroa britânica (CPS, na sigla em inglês) desistiu do caso.

 

Beth diz que X voltou para casa e continuou a maltratá-la.

 

A polícia não coletou um testemunho completo de Beth nem recolheu o vídeo dela sendo atacada. O CPS rapidamente derrubou as acusações.

 

As forças policiais em questão e o CPS insistem que o caso foi arquivado por falta de provas.

 

Depois de voltar para casa, Beth diz que X alegou que os serviços de segurança o apoiariam e que ela não era "nada".

 

Um vídeo separado, filmado secretamente por Beth, capturou conversas em que X sugeria que ela poderia ser morta por fazer muitas perguntas.

 

No vídeo, Beth pergunta se será ele quem vai matá-la. Em sua resposta, ele dá a entender que quase fez exatamente isso durante um episódio violento anterior.

 

Descansando presunçosamente em um sofá, ele continua: "Está constantemente dentro de mim. Essa coisa assassina está sempre dentro de mim... Eu sempre me imagino golpeando alguém até a morte... Sempre fui eu... Eu faço essas coisas desde que tinha seis anos... eu sou muito agressivo, eu mesmo sei disso."

 

O casal não permaneceria junto por muito mais tempo - X expulsou Beth de sua casa e desapareceu enquanto outra investigação contra ele estava em andamento.

 

Durante uma busca na casa após o ataque com o facão, policiais locais descobriram materiais extremistas - incluindo equipamentos nazistas pessoais de X.

 

A BBC teve acesso a um registro da polícia que detalha as evidências encontradas pelos policiais, entre elas um diário particular no qual X escreveu sobre matar "judeus". Ele também havia escrito sobre matar Beth.

 

Oficiais locais convocaram investigadores da ala antiterrorista, que por sua vez apreenderam vários itens. Uma investigação por terrorismo contra X foi aberta, mas ele deixou o Reino Unido enquanto a inquirição estava em andamento.

 

Poucas semanas depois de sua partida, Beth teve uma crise nervosa e foi hospitalizada.

 

Enquanto ela esteve internada, itens pessoais seus que também haviam sido apreendidos por agentes antiterroristas foram devolvidos a um membro de sua família por um homem que não se identificou.

 

O parente de Beth assumiu que o homem trabalhava com X, pois nem ela nem sua família sabiam da investigação por terrorismo.

 

A família ficou perturbada com essa visita - preocupada sobre como aquele homem estranho sabia seu endereço e como conseguiu os pertences de Beth.

 

Estabelecemos que o visitante era um oficial do MI5. Material apreendido por inquérito policial, sob mandado policial, havia sido entregue ao MI5.

 

O movimento incomum é consistente com a interferência em um processo criminal pelo serviço de segurança. Entende-se que os próprios pertences de X também foram entregues pela polícia ao MI5.

 

A polícia antiterrorismo afirma que não identificou atos criminosos durante suas investigações, mas pediu desculpas pelo fato de os pertences de Beth não terem sido devolvidos ​​diretamente à ela.

 

Após receber alta do hospital, Beth reclamou com a polícia local e questionou as autoridades sobre o porquê do caso ter sido arquivado, seus itens terem sido apreendidos e depois devolvidos por um estranho.

 

A polícia levou um ano para colher o depoimento da mulher, mas desde então alegou que não há nada para investigar, pois tudo foi investigado anteriormente. Não foi.

 

Durante a investigação na polícia, Beth foi informada de que a corporação não tinha informações sobre seus pertences terem sido apreendidos, mas que sabiam que alguns itens haviam sido levados e devolvidos a X.

 

A polícia disse que não apreendeu nenhum pertence como parte de sua própria investigação e foram "incapazes de informar quando ou por que eles foram levados".

 

Isso não era verdade, pois a força policial em questão foi responsável por convocar os oficiais anti-terrorismo.

 

A alegação da polícia que os pertences haviam sido devolvidos a X também é falsa - o material foi entregue ao MI5.

 

A BBC estabeleceu que, após o desaparecimento de X, ele se mudou para o exterior e começou a trabalhar para uma agência de inteligência estrangeira.

 

Mas X também tem um histórico de abuso naquele país - seu comportamento extremista e violento antecede seu trabalho com o MI5.

 

Localizamos e conversamos com outra ex-parceira do espião, que vive no mesmo país para onde ele se mudou. Seu relato do comportamento de X é tão alarmante quanto o de Beth. As duas mulheres nunca se conheceram ou se comunicaram.

 

Ruth - também não é o nome verdadeiro da mulher - diz que X parecia normal no começo, mas eventualmente começou a abusar dela e aterrorizá-la.

 

Ele também ameaçou a vida dela e de sua filha.

 

"Ele disse que poderia matar a mim e a minha filha também, e depois jogar nossos corpos em algum lugar e ninguém jamais saberia de quem eram".

 

Temendo por sua segurança, ela procurou ajuda de uma organização médica e foi levada para um refúgio. O trauma a deixou incapaz de falar sobre o assunto na época, e ela foi internada em um hospital.

 

"Eu estava psicologicamente quebrada, realmente quebrada", diz ela.

 

"Fiquei me perguntando por que ele mudou tanto, mas uma vez ele me disse que este é seu verdadeiro rosto e que ele estava atuando o tempo todo."

 

Localizamos um profissional que ajudou a cuidar de Ruth. Ele corroborou o relato dela e descreveu os eventos como talvez os mais perturbadores com os quais já se deparou.

 

Ele se lembrou de um caderno no qual X havia escrito sobre seu desejo de matar. Separadamente, Ruth também citou o caderno, dizendo que continha fantasias envolvendo "sangue, osso e carne. Carne humana. Comer carne de crianças".

 

E ele ameaçou matar e abusar sexualmente de meninas conhecidas de Ruth. Mais tarde, ele fez as mesmas ameaças a Beth.

 

A polícia no país estrangeiro para onde X se mudou foi informada sobre ele e a ameaça que ele representa.

 

Da mesma forma como posteriormente abusou de sua conexão com o MI5, X usou uma organização criminosa à qual estava ligado para aterrorizar Ruth, dizendo que seus membros poderiam matá-la.

 

X acabou desaparecendo, deixando apenas suas dívidas financeiras para Ruth.

 

Descobrimos que ele passou anos no Reino Unido usando o nome dela como forma de esconder sua verdadeira identidade, enquanto estava trabalhando para o MI5.

 

"Acho que não é justo e estou com raiva", diz Ruth. "Estou muito magoada. Me sinto enganada. Você não pode ter confiança. Não há justiça."

 

Nossa investigação teve acesso a evidências independentes que corroboram a descrição de ambas as mulheres sobre X.

 

Obtivemos documentos escritos por X nos quais ele se gabava de explorar mulheres sexualmente - usando uma linguagem que é ofensiva demais para ser repetida.

 

Em outros trechos, ele demonstrava aprovação em relação ao estupro e assassinato de uma jovem.

 

X ainda se inscreveu em um site para procurar mulheres britânicas utilizando um pseudônimo usado para seu trabalho no MI5. Beth relatou que ele buscava por mulheres online para explorá-las.

 

Da mesma forma que a BBC descobriu o histórico de violência e abuso de X, o MI5 também deve estar ciente.

 

No ano passado, um policial em serviço explorou grosseiramente de sua posição para coagir, estuprar e assassinar Sarah Everard.

 

O caso gerou grande repercussão e preocupação entre o público - também expressa por ministros do governo -, sobre como tal tragédia poderia ter ocorrido, bem como sobre a resposta mais ampla do Estado à violência contra mulheres e meninas.

 

Um inquérito sobre a morte foi anunciado, com o secretário do Interior dizendo que "irá esclarecer as falhas que permitiram que um policial em serviço abusasse de seu poder de maneira tão horrível e fazer recomendações para mudanças no policiamento".

 

Os sinais de alerta exibidos por X são gritantes. Ambas as mulheres que entrevistamos acreditam que ele é capaz de matar.

 

Mas, quando apresentamos nossas descobertas sobre X ao governo, um processo foi aberto no Supremo Tribunal para tentar impedir que essa história se tornasse pública.

 

O tribunal nos impediu de nomear X, pois seu envolvimento com outros extremistas poderia supostamente representar um risco para ele.

 

O governo disse que "não comentará sobre segurança ou inteligência", mas a ordem judicial "visa proteger a segurança nacional e evitar um risco real e imediato à vida, segurança e privacidade".

 

No entanto, a BBC queria identificar X para que as mulheres com quem ele já está em contato, ou aquelas que o encontrarem no futuro, possam ser avisadas.

 

 

Por BBC