QUE VIAGEM: FEIRA DA HELENA... Félix Valois

Bem em frente era o Cine Odeon. Pioneiro na utilização do ar refrigerado, foi lá que vi Robert Taylor representar Ivanhoé, o destemido cavaleiro medieval, símbolo de honra e lealdade. Nada parecido com a diretoria da Petrobrás. Do lado, era a boate com o

QUE VIAGEM: FEIRA DA HELENA... Félix Valois Félix é advogado e professor de direito Notícia do dia 27/02/2015

No próximo 12 de março, Helena Beatriz vai atingir a provecta idade de… dois anos. Bebê e neta, exerce implacável ditadura sobre este velho que lhes escreve. Ouvir dela algo que soa como “vovô, vem cá” tem o mesmo tom de uma sonata mozartiana para violino e piano. No último fim de semana ela se superou no exercício de sua autoridade inconteste: logrou a proeza de me tirar da cama às dez horas da madrugada do domingo e, na maior cara de pau, nos conduziu, à mãe dela (que eu ainda chamo de Neném) e a mim, à feira que funciona na Avenida Eduardo Ribeiro. A cunhantã estava repleta de graça e boçalidade, com integral consciência de seu domínio absoluto no território sentimental que governa com mão de ferro. Lá fomos nós, Lucinha na direção e eu no banco de trás do carro, montando guarda para a cadeira a partir da qual a “Perigosa” se deleitava com um desenho da Pepa Pig.

Paramos na Avenida Sete de Setembro e iniciamos a jornada de subida pela Eduardo Ribeiro. Para mim começava uma revisitação a locais que me foram tão caros na juventude. Logo na primeira esquina, onde hoje está plantada uma loja de modas, a memória me flagrou olhando a imagem do Bar Americano que, com suas portas movediças, à moda “saloon” do faroeste, fazia a delícia de boêmios. XPTO ou Brahama, não importava; a cerveja era sempre muito gelada, apesar da carência de energia elétrica. Do outro lado, bem em frente, parecia-me estar vendo a placa “Esquina das Sedas” e, ao seu lado, o Palácio da Moda, onde a elegância manauara passeava suas vaidades, sempre com a correta orientação do senhor Belmiro Vianez.

Lucinha esquecera a “coleira” com a qual é possível tentar controlar o ímpeto andarilho da Helena. Tínhamos que lhe dar as mãos, o que não é tarefa tão simples, em razão do senso de independência da ditadora. Ou carrega-la, o que é bem pior, já que, não estando nem aí para as academias de ginástica, a menina é gorducha e barrigudinha. Mas é linda. Pois muito que bem. Chegamos à próxima esquina, a da rua Henrique Martins. “Minha filha, disse eu, nesta rua ficavam as livrarias Escolar, Acadêmica e Colegial, que, aos sábados, frequentávamos com ares pretensamente intelectuais”. Depois, parávamos bem na esquina mesmo, conhecida como Canto do Fuxico e, tendo, de um lado, as Lojas Capri, e, de outro, a agência da Cruzeiro do Sul, falávamos de tudo, de mulheres (sempre bem), de homens (nem tanto) e de futebol, ao mesmo tempo em que verbalizávamos as soluções para os problemas do mundo. Acreditávamos na construção de uma sociedade justa e igualitária. Éramos jovens e tínhamos o direito de pensar e dizer. Até que veio a ditadura.

Mas até a saudade tem que ter um toque de alegria. Ora, como da ditadura só quem sente saudade sãos as amebas, deixemos isso pra lá e prossigamos na nossa jornada que, esta sim, traz lembranças agradáveis. No meio do quarteirão subsequente, fiquei com vontade de entrar no Café da Paz e ensinar mãe e filha a jogar uma partida de sinuca. Tolice. Aquele era território exclusivamente masculino e nem a feminista mais arrojada imaginaria quebrar o tabu. Nada impediria, entretanto, que, bem ao lado, nós entrássemos no Cine Avenida, passando pelas figuras simpáticas e dona Iaiá e seu Vasco, para ver, por exemplo a Rosana Podestá encarnando a figura de Helena de Tróia. A causadora da guerra não podia ser tão bonita assim.

Chegamos ao Bar Avenida, no cruzamento com a rua Saldanha Marinho. Enquanto a ditadorazinha se divertia com um balão figurando a Minnie Mouse, lembrei do célebre jantar para os engraxates, com o qual, segundo relato de José Ribamar Bessa Freire, o saudoso Alfredo Aguiar pregou uma peça exemplar ao proprietário do Bar. Hoje está lá um banco. Nãos mais cervejas nem jantares, apenas a promessa de crédito fácil, principalmente o consignado, por via do qual os velhinhos aposentados são, aí sim, facilmente extorquidos.

Bem em frente era o Cine Odeon. Pioneiro na utilização do ar refrigerado, foi lá que vi Robert Taylor representar Ivanhoé, o destemido cavaleiro medieval, símbolo de honra e lealdade. Nada parecido com a diretoria da Petrobrás. Do lado, era a boate com o mesmo nome. Logo em seguida, a saudade bateu em cheio mesmo. Passamos pelo local onde seu Ornan Bugalho pontificava com a Foto Artística e ali fui fotografado recebendo a hóstia da primeira comunhão das mãos de ninguém menos que o próprio Cristo. Depois, a redação de O Jornal e Diário da Tarde. Foi onde comecei a trabalhar. Dona Lourdes e seu Aloísio Archer Pinto, doutor Phellipe Daou receberam o moleque de dezessete anos que apenas iniciava uma trajetória que já se faz longa. Velhos tempos, velhos dias.

Em frente aonde era a Confeitaria Avenida, comemos bolo de milho e tomamos suco de cupuaçu. Começou um chuvisco chato. Dei uma última olhada para o pavilhão nacional, que tremulava na Praça do Congresso, emoldurado pelo prédio do Instituto de Educação. Foi onde vivi do Jardim da Infância até a quarta série ginasial. E iniciamos a viagem de retorno. Ainda passamos pelo Relógio Municipal e, se me entristeci vendo o prédio da Faculdade de Direito, na Praça dos Remédios, entregue às baratas, meu coração estava repleto de alegria. Não sei o seu nome oficial, mas, para mim, o evento dominical vai ser sempre e sempre a Feira da Helena.//// Artigo simultanêo com BLOGdaFLORESTA