LA PAZ — Depois de três semanas de protestos da oposição que culminaram com motins policiais e a perda de apoio das Forças Armadas , o presidente da Bolívia , Evo Morales , anunciou sua renúncia no fim da tarde deste domingo, após quase 14 anos no poder, em pronunciamento pela TV no qual afirmou ser vítima de um “golpe cívico-policial” e negou rumores de que fugiria do país.
A renúncia foi o desfecho dramático de um domingo que começou com outro pronunciamento de Morales, feito do hangar presidencial na base da Força Aérea em El Alto, cidade vizinha a La Paz, no qual ele propôs a convocação de novas eleições, depois que o resultado preliminar de uma auditoria feita pela Organização dos Estados Americanos (OEA) apontou irregularidades no pleito de 20 de outubro. Nesta votação, que motivou denúncias de fraude e os protestos opositores, Morales concorria a um quarto mandato que havia sido rejeitado em referendo em 2016 e foi declarado vencedor em primeiro turno pelo Tribunal Supremo Eleitoral (TSE).
— É minha obrigação como presidente indígena e de todos os bolivianos assegurar a paz social. Estou renunciando para que meus irmãos e irmãs, dirigentes e autoridades do MAS [Movimento ao Socialismo, o partido governista] não se sintam hostilizados, perseguidos, ameaçados. Renuncio ao meu cargo de presidente para que [Carlos] Mesa e [Luis Fernando] Camacho não continuem perseguindo os dirigentes sociais — disse Morales ao renunciar, referindo-se respectivamente ao ex-presidente que ficou em segundo lugar em 20 de outubro e ao líder da oposição radical, que comanda o Comitê Cívico do departamento (estado) de Santa Cruz.
Camacho disse nesta noite no Twitter que havia uma ordem de prisão contra Morales, e este denunciou também que havia uma ordem ilegal para que fosse preso. Além disso, o presidente demissionário afirmou que sua casa em La Paz foi atacada. Vinte dirigentes do MAS pediram asilo na Embaixada do México. O chefe da polícia, Bolívia, Yuri Calderón, que mais cedo havia pedido a renúncia do presidente, afirmou que não havia ordem de prisão contra Evo.
Morales e seu vice Alvaro García Linera, que também renunciou, fizeram o pronunciamento da cidade de Chimoré, no departamento (estado) central de Cochabamba, berço político de presidente demissionário, onde chegaram no avião presidencial. Além deles, a presidente do Senado, Adriana Salvatierra, do MAS, terceira na linha de sucessão, também renunciou. Mais cedo, o presidente da Câmara, Victor Borda, do MAS, anunciara sua renúncia depois de ter sua casa incendiada por opositores. Com isso, configurou-se um vazio institucional.
Morales e García Linera desmentiram rumores de que deixariam o país:
— A luta não termina aqui. Os humildes, os patriotas, vamos continuar lutando pela igualdade e pela paz. Espero que tenham entendido minha mensagem. Mesa e Camacho, não prejudiquem os pobres, não façam dano ao povo. Queremos que volte a paz social. Grupos oligárquicos conspiraram contra a democracia. Foi um golpe de Estado cívico e policial. Dói muito o que aconteceu — disse Morales.
Cerca de uma hora antes da renúncia, o comandante das Forças Armadas, Williams Kaliman, “sugeriu” em comunicado lido na TV que Morales renunciasse, para permitir “a pacificação e a manutenção da estabilidade”, juntando-se ao coro de líderes opositores que pediam a saída do chefe de Estado. “Também pedimos ao povo boliviano e a setores mobilizados que cessem as atitudes de violência e desordem entre irmãos”, leu Kaliman.
O comandante da Polícia, Yuri Calderón, uniu-se à pressão do chefe militar:
— Nos somamos ao pedido do povo boliviano de sugerir ao senhor presidente Evo Morales que apresente sua renúncia para pacificar o povo da Bolívia.
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Enquanto isso, o líder opositor Luis Fernando Camacho, empresário sem cargo eletivo que na última semana tomou a frente dos protestos contra Morales, entrou no palácio de governo em La Paz e se fez fotografar ajoelhado diante da bandeira boliviana e de uma Bíblia. Após a renúncia de Morales, Camacho pediu a formação de uma “junta de governo” integrada pelo “alto comando” militar e policial. Já Mesa, que aceitara as novas eleições desde que Morales não concorresse e que a oposição participasse da escolha de novos juízes do TSE, disse que a Bolívia deu “uma lição ao mundo” e “será um país novo”.
Morales vinha despachando de El Alto desde sexta-feira, quando policiais se amotinaram e deixaram de fazer a segurança do palácio presidencial em La Paz. Sua renúncia ocorreu em meio a uma onda de violência que se intensificou no fim de semana, quando casas de dirigentes do MAS foram incendiadas, incluindo as do governador de Oruro, Victor Vásquez, e do ministro da Mineração, César Navarro.
A ELEIÇÃO
De acordo com o resultado oficial da eleição de outubro, Morales teve 47,08% dos votos, contra 36,51% de Mesa — na Bolívia, para vencer no primeiro turno, são necessários 40% dos votos, com uma diferença de 10 pontos sobre o segundo colocado. O resultado preliminar da auditoria da OEA, no entanto, recomendou a anulação do pleito após constatar “irregularidades que variam entre muito graves e indícios” na apuração dos votos. Segundo a auditoria, que não menciona fraude intencional, Morales venceu o pleito, mas é “estatisticamente improvável” que tenha conseguido a diferença de 10 pontos percentuais necessária para evitar um segundo turno. “No componente informático foram descobertas graves falhas de segurança”, disse a auditoria.
A Secretaria Geral da OEA pediu em nota a anulação das eleições e a indicação de novos juízes do TSE, duas sugestões que Morales aceitou em seu pronunciamento da manhã, sem, no entanto, aplacar os opositores. A Procuradoria boliviana anunciou uma investigação dos sete integrantes atuais do TSE, e sua presidente, María Eugenia Choque, foi presa nesta noite.
O GLOBO