Toffoli suspende decisão do TJ do Rio que permitia apreensão de obras LGBT na Bienal

Presidente do Supremo atendeu a pedido da procuradora-geral; em outra decisão, Gilmar Mendes falou em "ato de censura prévia"

Toffoli suspende decisão do TJ do Rio que permitia apreensão de obras LGBT na Bienal O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli Foto: Jorge William / Agência O Globo Notícia do dia 09/09/2019

BRASÍLIA - O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, cassou a decisão do Tribunal de Justiça (TJ) do Rio que permitia a censura de obras com temática LGBT na Bienal do Livro no Rio. Toffoli atendeu a um pedido da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e proferiu a decisão no começo da tarde deste domingo, poucas horas depois de a procuradora-geral pedir no STF a derrubada da liminar do presidente do TJ, desembargador Claudio Mello Tavares.

Tavares havia autorizado o prefeito Marcelo Crivella a recolher as obras na Bienal. Em decisão sobre recurso feito pela organização do evento, também neste domingo, Bienal, o ministro do Supremo Gilmar Mendes seguiu a mesma linha. Em nota, Crivella informou que vai recorrer da decisão do Supremo.

"Defiro a liminar, para conceder a suspensão da decisão da presidência do TJ-RJ, a qual havia suspendido a decisão do desembargador Heleno Ribeiro Nunes", escreveu Toffoli na decisão em que acolhe os argumentos da procuradora-geral da República. No pedido encaminhado ao STF, Dodge disse que a suspensão da liminar do presidente do TJ é necessária para "impedir a censura ao livre trânsito de ideias, à livre manifestação artística e à liberdade de expressão no país".

Crivella tentou censurar obras com temática LGBT na Bienal, o que despertou um forte movimento contra o ato do prefeito. Ele manifestou incômodo com o beijo entre dois personagens numa história em quadrinhos à venda na Bienal — o livro "Vingadores - A cruzada das crianças", da Marvel, publicado originalmente em 2010. O prefeito interpretou que a obra é ofensiva a crianças e adolescentes, e cunhou o termo "homotransexualismo" para se referir ao conteúdo da HQ.

A Prefeitura do Rio de Janeiro informou que vai recorrer, no STF, embargos de declaração à decisão do ministro Dias Toffoli. No recurso, a Procuradoria Geral do Município afirma que "a decisão não examina o fundamento da medida tomada pelo município do Rio de Janeiro ao fiscalizar a Bienal do Livro: a defesa de crianças e adolescentes, com base no Estatuto da Criança e do Adolescente, que determina que revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado para menores devem ser comercializadas em embalagem lacrada, com advertência sobre seu conteúdo".

Caso 'urgente'

Primeiro, uma liminar do desembargador Heleno Nunes, da 5a Câmara Cível do TJ, foi favorável ao pedido da direção da Bienal do Livro e impediu a apreensão de obras determinada pelo prefeito. Depois, o presidente do TJ, desembargador Claudio Tavares, derrubou a liminar e atendeu a recurso de Crivella. Dodge, então, enxergou ato de censura e pediu que o presidente do STF, plantonista no fim de semana, derrubasse a decisão do presidente do TJ. Toffoli atendeu ao pedido da procuradora-geral.

Para o presidente do STF, o caso é urgente, uma vez que a Bienal se encerra neste domingo, e é de competência do Supremo, "tendo em vista que a celeuma estabelecida na origem se perfaz em torno de diversos princípios constitucionais, dos quais se destaca a liberdade de expressão, o princípio de igualdade e os direitos da criança e do adolescente". Toffoli não enxergou relação entre publicações com conteúdo homoafetivo e a necessidade de obrigação de advertência sobre o conteúdo, à luz do que está escrito no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Quando a decisão do TJ concorda com a visão do prefeito, ela "findou por assimilar as relações homoafetivas a conteúdo impróprio ou inadequado à infância e juventude, ferindo, a um só tempo, a estrita legalidade e o princípio da igualdade", afirmou Toffoli. "Somente àquela específica forma de relação impôs a necessidade de advertência, em disposição que se pôs na armadilha sutil da distinção entre proteção e preconceito. Não há que se falar que somente o fato de se tratar do tema 'homotransexualismo se incorra em violações aos valores éticos e sociais da pessoa e da família."

O presidente do STF lembrou na decisão que a Corte já reconheceu a união civil entre pessoas do mesmo sexo há oito anos. E que o regime democrático "pressupõe um ambiente de livre trânsito de ideias, no qual todos tenham direito e voz". "A democracia somente se firma e progride em um ambiente em que diferentes convicções e visões de mundo possam ser expostas, defendidas e confrontadas umas com as outras, em um debate rico, plural e resolutivo", afirmou Toffoli na decisão.

Ele lembrou que a liberdade de expressão está prevista na Constituição. "A liberdade de expressão é um dos grandes legados da Carta Cidadã, resoluta que foi em romper definitivamente com um capítulo triste de nossa história em que esse direito – dentre tantos outros – foi duramente sonegado ao cidadão. Graças a esse ambiente pleno de liberdade, temos assistido ao contínuo avanço das instituições democráticas do país".

Manifestação na Bienal do Livro contra censura

Manifestação na Bienal do Livro contra censura Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo

Em nota, o presidente do Tribunal de Justiça do Rio, desembargador Cláudio Mello Tavares, reagiu, e falou em "deturpação" em comentários sobre sua decisão: "Diante da deturpação que tenho visto em comentários sobre minha decisão, decidi fazer o presente esclarecimento, para que o cidadão de bem possa compreender o que objetivamente se passou.

Jamais fiz “censura” alguma.  Censura ocorreria se eu houvesse proibido a publicação ou circulação da obra em questão.

Como se trata de espaço aberto ao público, o que determinei, segundo meu convencimento, foi simplesmente o alerta sobre conteúdo delicado, para que os pais pudessem decidir ou participar da decisão de aquisição da obra, voltada ao leitor infanto-juvenil, ainda em formação. Essa a razão da decisão.

Da forma como certos grupos vêm publicando as respectivas notícias,  tem-se induzido o leitor na errônea premissa de que minha decisão teria obstaculizado a livre circulação de obras, ideias ou pensamentos.  Isto é absolutamente falso.

Sempre respeitei a pluralidade das ideias e opções sexuais, mas, ao tratar de crianças e jovens em formação, entendo que o alerta aos pais é devido, até mesmo em respeito a eles.

Afinal, a obra em questão foi oferecida em espaço aberto ao público, e não nos quintais das casas de seus autores, onde podem fazer o que bem entenderem".

Em outro processo, o ministro Gilmar Mendes impediu a prefeitura do Rio de fazer qualquer fiscalização relativa a conteúdo de obras, além de proibir que seja recolhido qualquer livro exposto na feira. A decisão de Gilmar também veda que a prefeitura cancele o alvará da Bienal.

"Ao determinar de forma sumária o recolhimento de obras que tratem do tema do homotransexualismo de maneira desavisada para público jovem e infantil, a ordem da Administração Municipal consubstanciou-se em verdadeiro ato de censura prévia, com o nítido objetivo de promover a patrulha do conteúdo de publicação artística", argumentou Gilmar. "Além de violar diretamente a proibição constitucional a qualquer tipo de censura prévia, a decisão reclamada também contraria frontalmente a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal ao veicular uma interpretação das normas do ECA calcada em uma patente discriminação de gênero", continuou o ministro. 

texto: Vinicius Sassine

O GLOBO