Crise revela a valentia das mulheres da Venezuela nas casas, nas ruas e na política

Argélia é jornalista e enfrenta um regime ditatorial através de relatórios encomendados por clientes (a censura acabou com a imprensa), mensagens nas redes sociais e encontros para os quais é contratada como analista política.

Crise revela a valentia das mulheres da Venezuela nas casas, nas ruas e na política A Venezuela é uma terra na qual as mulheres têm um papel absolutamente decisivo Foto: Arte de Larissa Arantes sobre foto de CARLOS GARCIA RAWLINS Notícia do dia 10/03/2019

Elas têm nome de países distantes, Argélia e Grécia, mas nasceram em Caracas e choram só de pensar na possibilidade de abandonar a Venezuela. São irmãs e amigas, e se o destino final for um exílio forçado, a única opção é irem juntas, com os maridos, um filho e o pai viúvo. As conheci em uma das tantas viagens que fiz ao país nos últimos 17 anos, e por meio delas entendi até onde é capaz de chegar a força da venezuelana.

Argélia é jornalista e enfrenta um regime ditatorial através de relatórios encomendados por clientes (a censura acabou com a imprensa), mensagens nas redes sociais e encontros para os quais é contratada como analista política. Sua arma são as palavras e uma capacidade incrível de traduzir o que acontece nos bastidores.

A luta de Grécia é nas ruas. Em 2017, ela foi a todas as marchas convocadas pelo oposição, arriscando a vida ao lado de primas, amigas e do filho, um adolescente que nasceu com Hugo Chávez no poder (1999-2012) e não conhece a Venezuela na qual a mãe e a tia cresceram. Grécia perdeu uma filha recém-nascida. Só fiquei sabendo desse passado trágico após conhecer sua militância pela recuperação dos direitos civis e democráticos. Minha admiração só cresceu.

Solidão

Estas irmãs representam a essência feminina do país. A Venezuela é uma terra na qual as mulheres têm um papel absolutamente decisivo. Em casa, na política, na vida empresarial e, principalmente, como pilar familiar. Enfrentam quem se colocar na frente e exibem uma coragem colossal.

Nas minhas visitas a Caracas conheci muitas dessas mulheres. Uma delas é alta funcionária num organismo regional. Mãe de quatro filhos, separada, hoje vive sozinha na capital e quando pode viaja aos países escolhidos pelos filhos para construir um futuro. Quando a vi pela primeira vez, os quatro ainda moravam em Caracas. Foi em 2005, e a Venezuela era um país bem diferente. Os mais novos eram adolescentes, e a mãe fazia malabarismos para criá-los num ambiente de crescente insegurança urbana. Com o tempo, a migração tornou-se a única saída, e por ironia do destino ela teve de retornar a Caracas.

A solidão faz parte da vida de muitas mulheres venezuelanas. A professora Maria Teresa Belandria foi nomeada “embaixadora” no Brasil do “governo encarregado” de Juan Guaidó. Abandonou um curso em Washington para aderir à ofensiva opositora e hoje sua casa é o quarto de um hotel em Brasília, que também chama de “embaixada”.

Nos últimos anos, vários nomes de mulheres se tornaram famosos pelo vínculo com políticos perseguidos. Uma das que mais me impactou foi Patrícia, mulher de Daniel Ceballos, ex-prefeito preso pelo chavismo que chegou a liderar uma rebelião no Helicoide, o centro de detenção do Serviço Bolivariano de Inteligência (Sebin). Com o marido preso, encontrei Patricia na porta do Helicoide, em Caracas. Estava rodeada de outras mulheres que viviam a mesma situação e, juntas, desafiaram a Guarda Nacional Bolivariana, que exigia sua saída. Patrícia não só ficou como chamou mais gente e falou com cada jornalista.

Mulher guerreira na Venezuela oto de CARLOS GARCIA RAWLINS

A fome como limite

As mulheres de opositores e presos em geral assumiram, na grande maioria, a organização das campanhas pela libertação. Lilian Tintori viajou pelo mundo pedindo a liberdade de Leopoldo López, chegando a se amarrar com correntes na porta do Vaticano junto a Mitzy Ledezma, mulher de Antonio Ledezma, ex-prefeito de Caracas. Leopoldo está em prisão domiciliar, e Ledezma fugiu para a Colômbia. No caso de Lilian, a história inclui a gravidez no período em que Leopoldo estava detido na prisão de Ramo Verde e recebia visitas esporádicas da mulher.

Lilian continuou na luta e depois do nascimento do terceiro filho mantém uma agenda intensa no partido Vontade Popular. No mesmo partido milita Fabiana Rosales, mulher de Guaidó, que aos 26 anos passou a ser “primeira-dama encarregada”. Fabiana é mãe de Miranda, de 1 ano e meio, e trabalhava em comunicação. Hoje está 100% dedicada a colaborar com a ofensiva comandada pelo marido.

Até não muito tempo atrás, as venezuelanas eram famosas pela participação no concurso de Miss Universo, onde sempre ficavam bem posicionadas. Hoje se destacam por uma valentia que parece não ter limites. Diante de um governo repressor, violento, que assassina e viola os direitos humanos, não se deixam intimidar.

E nesse país, que vive uma crise humanitária sem precedentes, são elas que, em muitos casos, arregaçam as mangas para conseguir comida, remédios. No Rio, conheci refugiadas, e alguns dos relatos eram profundamente comoventes. Marilin Bracho, de 42 anos, passou quatro meses dormindo na rua em Boa Vista e há dois meses mora num refúgio da Cáritas no Recreio.

Marilin superou um câncer de ovário e depois teve Matias, de 3 anos, que ficou na Venezuela com a avó. O sonho dela, que conseguiu emprego na limpeza de um hotel, é trazer o filho e, quando for possível, voltar a seu país. Ela tenta deixar atrás o pesadelo vivido em Roraima. Passou por tudo sozinha e não faz a menor ideia de onde está o pai do filho.

Nas classes mais baixas, a maior dor das venezuelanas é não ter recursos para alimentar os filhos. Isso explica, em grande medida, porque muitos chavistas deixaram de apoiar o governo Nicolás Maduro. A fome foi o limite.

Todos os dias morrem crianças por desnutrição e falta de medicamentos. Fabiana acaba de perder um sobrinho por escassez de insumos nos hospitais. Já tinha perdido o pai, em 2013, pela mesma razão. Ela acompanhou Guaidó pelo périplo latino-americano. Ao lado dele, desembarcou no aeroporto de Maiquetía, num dos gestos de maior ousadia de um opositor desde que o chavismo chegou ao poder.

A maioria opositora na Assembleia Nacional, que Maduro não reconhece, está integrada por várias congressistas que já respiraram muito gás lacrimogêneo. Algumas terminaram em plantões de hospitais. Num passado não tão distante, a ex-deputada Maria Corina Machado, dirigente ativa e combativa da oposição, foi agredida fisicamente por deputados da bancada governista. Sua foto com o nariz sangrando chocou o mundo. A todas sempre fiz a mesma pergunta: como fazem para superar o medo? E de muitas recebi a mesma resposta: nosso maior medo é não conseguir sair dessa escuridão.

Texto: Janaina Figueiredo Especial Para O Globo

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